Mediatizar a alienação

Os incidentes registados  em Guimarães e no Marquês de Pombal, à sombra do que foi entendido como  legitimidade festiva de um clube bi-campeão, reconduz-nos ao papel dos media e dos vários actores envolvidos: dirigentes, polícias, políticos, além de  jornalistas e, claro, adeptos ou fanáticos de qualquer coisa.

Tão grave quanto os incidentes foram os comportamentos evasivos e desculpabilizantes dos dirigentes de topo do Benfica, do novo presidente do Município lisboeta, ou da ministra da Administração Interna. Todos sem a firmeza e o 'golpe de asa' que a situação exigiria.  

Quanto aos media, o que aconteceu implica uma reflexão – sempre adiada – sobre  o seu papel na sociedade de informação, em pleno século XXI. A insensatez e o abuso de imagens fortes constituem o rastilho para despertar emoções primárias, que nunca se fazem esperar. 

O futebol tornou-se um combustível perigoso, altamente inflamável, propício a todos os aproveitamentos, dentro e fora de jogo. 

Há 40 anos, no calor revolucionário pós 25 de Abril, o futebol correu o risco de ser erradicado das primeiras páginas dos jornais – mesmo dos desportivos -, visto como 'fascista' ou 'fascizante'. Juntamente  com o fado e Fátima, era a trindade que os novos poderes abertamente ostracizavam.

Para se furtar às iras revolucionárias, a imprensa apressou-se a substituir na capa, envergonhadamente,  o futebol por outras modalidades, sem os pergaminhos do 'desporto-rei',  que jamais haviam alcançado esse estatuto.

A exclusão do futebol das primeiras páginas, acarretou, contudo, o definhamento  das tiragens, colocando os editores à beira de um ataque de nervos. Em consequência, a moratória  teve a perna curta. 

Imprensa e audiovisuais  não tardaram a emendar a mão. Quebrado o  jejum, o futebol reapareceu em força, com redobrado  espaço. E transformou-se num study case, que extravasou há muito as quatro linhas do rectângulo.

A 'futebolização' apossou-se mesmo da imprensa, dita de 'referência', amplificada nas  televisões, que lhe deram primazia absoluta, como um dos eixos centrais dos seus alinhamentos. E progrediu imparável, influenciando a agenda mediática.

Os programadores nem precisam de ser imaginativos. Com futebol em directo, ou em  diferido, e as horas intermináveis preenchidas com exaltados pseudo-debates – ilustrados ad nauseam com os lances polémicos -, seguram-se as audiências em prime time sem grande pudor. Com mais  telenovelas e reality shows, o dia fica feito. E ganho.

Mas não deixa de ser deprimente observar, no desfile luzido de 'comentadores' a presença de políticos encartados e de personalidades com nome na praça, oriundos de profissões respeitáveis.

Invariavelmente, os 'comentadores' exibem uma opinião definitiva, de  camisola vestida, servindo  o conflito em doses fartas, como convém às audiências.

Esta 'sopa de pedra' usa ingredientes indigestos e desaconselháveis. Mas é servida com zelo.

Depois, as banalidades debitadas por qualquer treinador, jogador ou dirigente, antes e depois dos jogos, passaram a abrir telejornais. Não raramente, são gasolina derramada  em cima do fogo.

Se antes da revolução de Abril o futebol era tomado como um dos suportes alienantes do Regime, actualmente protagoniza a própria alienação.

Enquanto pululam nas redes sociais as 'virgens ofendidas'  com a remuneração de um gestor ou de um governante, não há memória de alguém se incomodar com os valores obscenos  dos contratos  celebrados por futebolistas, treinadores e intermediários. Importante é que o clube ganhe.

Este mundo de faz-de-conta, construído na intriga e no exacerbamento de tensões, constitui uma realidade potencialmente explosiva .

Todos o sabem, mas todos o escondem, enquanto meticulosamente  lançam achas para a fogueira.
                
Os incidentes de Guimarães ou do Marquês provam que se foi longe demais. Mas quem se importa? O mecanismo do passa-culpas foi accionado de imediato. O edil da capital recebeu em júbilo os campeões nos Paços do Concelho. E os media, acríticos, não se fizeram  rogados. 

Vivem-se tempos estranhos. Com o colapso das ideologias, os recalcamentos e os fanatismos  encontraram terreno propício.  Os vazios nunca perduram indefinidamente.

Os clubismos foram conquistando o território das emoções. O futebol tomou conta de muita gente. Uns por convicção, outros por oportunismo, e ainda outros por negócio. Raros com alma. E cérebro.

Em tempo: faleceu  Fernando Pires, um jornalista que dedicou mais de meio século de vida ao DN. Nem por isso mereceu, no dia seguinte,  uma linha na primeira página. Chefe da redacção  'à antiga', sabendo de cor o jornal do dia, foi um excelente profissional,  homem justo e leal. Trabalhámos juntos muitos anos. Ficará na minha memória.