Ironia do intestino

O que é que tem neurónios mas não ‘pensa’, é limpo mas produz sujidade e tem efeito num amplo conjunto de coisas, das nossas articulações ao nosso estado de espírito? Como já vislumbrou, com certeza, pela capa de um dos livros expostos nestas páginas, o leitor atento desfez o enigma. A resposta é simples: os…

Ironia do intestino

Mas quem, perguntará ainda o leitor que não tenha abandonado estas linhas, se lembrou de falar de tão inusitadas partes do corpo humano? E como surgem, não um, mas dois livros inteiros sobre o assunto?

A resposta também é simples. É que nos últimos quatro/cinco anos, não mais, a investigação médica pegou no assunto e descobriu novidades importantes sobre a matéria, que é muito mais do que apenas fecal.

Os intestinos formam uma rede complexa, ligada não só ao sistema digestivo como um todo, mas ainda ao cérebro. Essas ligações parecem neurónios e a dinâmica de um intestino saudável – e, em consequência, de um sistema digestivo em forma – é dada pelo comportamento das bactérias que o povoam.

'Bactérias? Está tudo doido?', perguntará outra vez o leitor avisado. Sim. A nossa evolução para o que somos hoje foi feita com elas. “95% de todas as bactérias deste planeta não nos fazem mal. E quantas mais – das benéficas – tivermos no intestino, mais protegidos estamos de infecções”, diz a (muito) jovem médica alemã Giulia Enders, que se decidiu pela gastroenterologia desde que, aos 17 anos, lhe apareceram umas estranhas feridas numa perna, que depois alastraram para outras partes do corpo.

Este foi o mote daquela que viria a ser a sua carreira profissional e para o livro A Vida Secreta dos Intestinos (Lua de Papel), lançado recentemente entre nós. O fascínio das vísceras – até pelo nome que lhes é dado popularmente soam a vulgares e sujos, assunto tabu – é recente por vários motivos. O principal foco do entusiasmo e, ao mesmo tempo, do impedimento de chegarem a grupos de investigação será, talvez, o facto de serem “a segunda maior colecção de neurónios depois do cérebro”, explica Enders. Além disso, diz, são muito mais limpos do que se pensa, já que passam por um processo de limpeza – renovação celular – mais ou menos a cada duas semanas. E só a parte final, uma pequena percentagem, é que contém as fezes. 

Mas há mais: estão tão interligados entre si e com outros sistemas – entre os quais o imunitário e, claro, o cérebro – que se tornam “complicados para a investigação, mas também interessantes, na medida em que modificam o nosso corpo e a nossa saúde”.

Depois de muitos diagnósticos fora do alvo, a futura médica acabou por perceber, por curiosidade e pesquisa próprias, que aquelas feridas tinham a ver com a sua alimentação. Bastou-lhe, por isso, retirar da mesa os alimentos com glúten e o leite para que as feridas regredissem até sarar.

O livro quebra o tabu de falar sobre os órgãos responsáveis pelos nossos dejectos mais repugnantes. De forma descontraída e até jocosa, Enders descreve o sistema e como o podemos equilibrar para tentar adiar a ida ao médico ou até prevenir doenças. Sempre com o auxílio das ilustrações da irmã, Jill. Descomplexada, Giulia Enders sugere até, após uma visita à casa-de-banho, “olhar para baixo, ver o que 'produzimos' e verificar se está tudo bem. Não nos devemos sentir embaraçados por falar no assunto”. Quanto a detalhes sobre a matéria, o melhor é mesmo deixá-los para a leitura da obra…

A alimentação, já se disse, é fundamental. Os conselhos podem ser muitos, mas há um que prevalece – escute, ou conheça, o seu corpo. O resto é feito de equilíbrio: alimentarmo-nos é também dar de comer aos animais (bactérias) que existem na nossa flora intestinal. “Se comermos um pouco mais de alimentos prebióticos teremos muito mais benefícios – coisas como alhos, cebolas, chicória, espargos, ou alimentos frios como a batata numa salada ou o arroz do sushi”, atesta Giulia Enders.

Mas não há mal nenhum, continua a médica, em cometer os nossos pecadinhos, como ingerir um chocolate ou comer carne, algo que a própria OMS recomenda, recorda Enders, duas a três vezes por semana. O modo como vamos conhecendo o nosso corpo ajuda a não cometer excessos. Não é preciso tornarmo-nos vegetarianos ou vegans.

Podemos experimentar, sem perder o norte: “As experiências não devem ser feitas sem sabermos nada. O idealismo, sozinho, não é suficiente para que possamos brincar com o nosso corpo”, garante.

Há doenças que estão ligadas ao desequilíbrio das bactérias do intestino, que vão da tensão alta a doenças metabólicas, como a diabetes ou até a depressão ou a ansiedade. E a alimentação equilibrada, garante Enders, baseada em fibras, pode até servir de factor de prevenção do cancro do cólon. Isto tendo em conta que o cólon é constituído por três partes. “Quando comemos pouca fibra, ela é absorvida apenas numa dessas partes. Então, as bactérias situadas noutra das partes têm de ficar com o que sobra. E comem as fibras provenientes da carne. Ora, bactérias e carne combinam mal”.

Basicamente, o mesmo diagnóstico é traçado pelo espanhol Miguel Ángel Almodóvar noutro livro recentemente editado em Portugal. Almodóvar vai mais longe ao chamar aos órgãos digestivos O Segundo Cérebro, título da sua obra, editada pela Vogais. Com uma formação heterodoxa – começou pela sociologia -, Almodóvar é investigador do Centro de Investigações Energéticas, Tecnológicas e do Meio Ambiente de Espanha. E já tem alguns livros publicados sobre a arte de bem se alimentar para prevenir doenças, como 50 Alimentos para Viver Melhor.

Em diálogo com o cérebro

Tal como Giulia Enders, o autor reforça a complexidade do sistema digestivo: “No contínuo que forma o aparelho digestivo (esófago, estômago, intestino delgado e cólon)”, diz ao SOL em conversa por email, “existe um sistema nervoso formado por milhões de neurónios que se descobriu, recentemente, que permanecem em contacto permanente e bidireccional com o cérebro”. Este 'segundo cérebro' passa a vida a trocar informação com “o cérebro craniano”. Esse 'diálogo' veio, então, tornar as coisas mais complicadas. O que poderão dizer um ao outro? Certo é que esse novo estatuto abriu caminho, diz Almodóvar, a uma disciplina inédita, a neurogastroenterologia, “que num futuro próximo permitirá melhorar os diagnósticos e os tratamentos de doenças físicas e mentais de maneira eficaz, natural e minimamente invasiva”.

Para este livro, o investigador analisou o trabalho de vários grupos que se debruçaram sobre casos clínicos. E, na linha de outras obras da sua autoria, traça caminhos para a nossa alimentação que acabam por complementar as sugestões da médica alemã. O que vai para o prato, defende Almodóvar, é fundamental para “manter em forma o nosso microbioma [o novo nome dado à flora intestinal]”. Por isso, são de evitar gorduras parcialmente hidrogenadas ou 'trans' (aquela sobrecarga de gordura que é adicionada, sobretudo à fast food, para tornar o sabor mais atraente ao palato e que tem levado os níveis de obesidade aos píncaros do absurdo) e substituí-las por gorduras saudáveis – o azeite, lá está -, reduzir o consumo de carnes vermelhas e abraçar os alimentos prebióticos e probióticos (derivados de leite, por exemplo).

Já se conheciam estas prudências, mas este novo campo de estudos, salienta Almodóvar, ainda começa a caminhar: “Para se ter uma ideia, a sequenciação genética do microbioma foi concluída em 2010 e 90% do que se publicou neste âmbito em revistas de alto nível científico foi nos últimos cinco anos”.

Tal como Giulia Enders, Almodóvar menciona o papel fundamental dos microorganismos que povoam os nossos intestinos na nossa própria evolução. Qualquer dos autores mostra preocupação com o ambiente excessivamente asséptico das sociedades ocidentais, que estará a inverter esta longa e feliz relação que nos une aos nossos micróbios. O espanhol explica que “hoje existem poucas dúvidas de que nas sociedades ocidentais muito desenvolvidas a diversidade microbiana reduziu-se drasticamente e isso deu lugar a um aumento extraordinário de enfermidades imunológicas e metabólicas, como as alergias, a asma ou a diabetes”.

O contraste pode ser dado com um estudo recente junto dos índios yanomami da Venezuela, cujos organismos têm colónias de bactérias com a maior diversidade já detectada entre os seres humanos. “Neste estudo, talvez o mais assombroso é verificar que no organismo deste povo existem genes com capacidade de resistir a tratamentos com antibióticos”, espanta-se Almodóvar. 

Mesmo estando em declínio, estas bactérias continuam com o seu papel fundamental. Giulia Enders e Almodóvar acabam por prestar a homenagem devida a estes pouco nobres órgãos. E nenhum aponta para caminhos milagrosos ou derradeiros. O conhecimento, acima de tudo, é o guia, como resume a alemã: “O corpo pode ser uma boa bússola. Muitas vezes ela é enganada pela indústria alimentar”. 

ricardo.nabais@sol.pt