Cristiano Ronaldo: da Irina à urina

1. Ao contrário do que muitos afirmam, julgamos que as redes sociais produziram um efeito globalmente positivo nas sociedades. No que à política diz respeito, hoje todos os cidadãos têm a oportunidade de se expressarem e sentirem que dispõem, de facto, uma parcela do poder político – ou que, pelo menos, dispõem da susceptibilidade de…

2. Por ora, interessa-nos reflectir sobre o impacto das redes sociais e das novas plataformas de comunicação na forma de trabalhar dos media. De facto, o primeiro impacto mais imediato e intenso da utilização em massa das redes sociais foi o de converter cada cidadão num jornalista potencial. E qual o critério editorial do adolescente que já tem um tablet ou smartphone, com uma câmara sofisticada, e que pode filmar o que quiser, publicando instantaneamente na rede? E qual o critério editorial do senhor que quer ser o mais popular no seu local de trabalho e não perde uma oportunidade de postar um vídeo engraçadíssimo, super caricato, “tipo bué engraçado, tás a ver”? Nenhum critério, para além de ser a vedeta da sua rua, do seu local de trabalho, do seu círculo de amigos. E, se correr bem, vai ter um número muito razoável de visualizações no Youtube ou no Facebook – aparecendo, qualquer dia, na capa de uma revista mainstream ou numa daquelas revistas para adolescentes.

3. Face a este cenário, o jornalismo de referência, os verdadeiros jornalistas (os profissionais) tiveram de responder a estes desafios da informação difusa e global, sob pena de os grupos de media encerrarem de vez. Como foi essa resposta? Mantendo a exigência nalgumas matérias mais institucionais, designadamente na política, onde continua a imperar em Portugal a lógica do “respeitinho” pelos políticos e o discurso redondo – e baixando a qualidade noutros domínios, dando ressonância a fenómenos tipicamente de redes sociais. Hoje mais do que nunca, as audiências são quem mais ordena.

4. E para conseguir audiências, há muitos “talismãs” facilmente identificáveis. As notícias sobre sexo lideram sempre as preferências. Basta dizer “sexo” – e as redes sociais agitam-se. Em termos de personalidades, Cristiano Ronaldo e Irina são imbatíveis.

5. Por isso, os jornais não se contiveram em dar amplo destaque ao fim da relação entre Cristiano Ronaldo e a modelo russa. Ficámos a saber que a família de Ronaldo não gostava de Irina – e Irina não gostava da família de Ronaldo. Ficámos a  saber que Ronaldo não tinha paciência para Irina – e Irina sentia-se feia ao lado de Ronaldo (até nisto, Ronaldo consegue o que julgamos impossível…).

6. Ficámos a saber que Ronaldo é um poligâmico incorrigível – e Irina não tinha paciência para as aventuras múltiplas de Ronaldo. E ficámos a saber que Ronaldo, entretanto, já teve uma jornalista espanhola, animou-se junto de uma modelo italiana após a derrota com a Juventus e já se fala numa brasileira – e Irina é a nova namorada do actor norte-americano Bradley Cooper. Ufa, isto cansa! Que vida agitada – e muito animada! – que é a vida de estrela!

7. Quanto a nós, Cristiano e Irina podem continuar o seu afã noticioso: é o star system a funcionar em toda a sua plenitude. E as pessoas gostam de filmes ou telenovelas das suas celebridades: as celebridades fazem a vontade aos seus admiradores e mesmo aos não admiradores.

8. Agora, o que não compreendemos é que da Irina, tenhamos passado para a…urina. Exatamente, meu caro leitor, não se enganou a ler: para a…urina do Cristiano Ronaldo. Não há dia que não recebamos actualização noticiosa sem referência à urina de Cristiano Ronaldo em Saint-Tropez. Tanto quanto sabemos, a urina é uma coisa muito desagradável…não é star system! Ou, quanto muito, é um star system muito pouco higiénico!

9. Já que temos de receber notícias sobre Cristiano Ronaldo, ao menos, falem sobre a Irina – e deixem lá o legado biológico que Ronaldo terá deixado em Saint-Tropez. Pode ser? Mantenhamos o star system minimamente…enfim…tolerável.

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