Magistrados em guerra com ministra da Justiça

A incerteza em torno da aprovação dos novos estatutos dos juízes e dos magistrados do Ministério Público (MP) está a deixar Paula Teixeira da Cruz debaixo de uma onda de críticas.

Na última quarta-feira, a ministra da justiça disse no Parlamento que fará tudo para concluir o processo, mas salientou que será difícil devido às propostas de aumento salarial. As propostas resultaram, porém, de grupos de trabalho presididos pelo secretário de Estado da Justiça, António Costa Moura. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) acusa a ministra de ter feito afirmações falsas no Parlamento. Já os magistrados do MP argumentam que nunca se referiram à questão remuneratória como uma obrigatoriedade e que o importante é que o novo estatuto avance.

Numa carta aberta hoje divulgada, a ASJP refere que, na semana passada, na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a ministra procurou "justificar o incumprimento do programa do Governo para 2015, na parte referente ao estatuto dos magistrados, atribuindo aos juízes uma proposta remuneratória absolutamente desenquadrada da realidade do nosso país". Paula Teixeira da Cruz reconheceu, na altura, a existência de dificuldades na aprovação dos estatutos, revelando que na proposta que lhe foi apresentada havia subidas salariais de 3.000 para mais de 4.000 euros e nalguns casos de 7.000 para 9.000 euros, sem contar com os diversos subsídios, incluindo de transporte.

Em declarações ao SOL, Maria José Costeira, presidente da ASJP, esclarece que esses valores não correspondem à proposta dos juízes. “Esse grupo de trabalho,  que contava com membros do Governo, apresentou apenas uma proposta. Se a ministra da Justiça não estava de acordo, alterava-a e depois chamava as partes”. A magistrada adianta mesmo que o que se tentou foi, por exemplo, acabar com casos em que um juiz “ao longo de 30 anos de carreira possa ter apenas uma variação de 200 euros”. Para a presidente da ASJP, o que está a acontecer é uma “incapacidade da ministra para tratar o dossiê” e isso pode significar o incumprimento do programa do Governo.

Já António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados dos Ministério Público, defende que os aumentos salariais propostos pelo grupo de trabalho não podem ser vistos como um obstáculo à aprovação do estatuto. “Tivemos uma reunião com a senhora ministra no dia 5 de Maio e dissemos-lhe: para nós, a questão remuneratória não é um obstáculo, não é fundamental. Queremos é que se avance com o novo estatuto, que é imprescindível para a reforma judiciária. Só com a  aprovação do novo estatuto do MP é que se completa a reforma”, explicou ao SOL.

Ventinhas disse ainda que “a posição da ministra, ao justificar a demora na lei com uma reivindicação salarial, é inqualificável e incompreensível”. O procurador assegura que não podem as subidas salariais propostas pelos grupos de trabalho ser invocadas como o problema, até porque não é conhecida a proposta final que a ministra elaborou e que foi enviada para o Ministério das Finanças.

Paula Teixeira da Cruz reage às críticas

Numa nota explicativa, o Ministério da Justiça esclareceu que a proposta dos grupos de trabalho pressupunha que, “no ingresso, um magistrado do Ministério Público passaria de €2.863,92 (€2.243,92, acrescidos de €620 de subsídio de compensação) para €4.224 (€3.000 de remuneração base e o suplemento de condição de magistrado no valor de €1224).” O gabinete de Teixeira da Cruz lembra ainda que “no caso do Procurador-Geral da República a sua remuneração passaria de €7.093,24 (€5.394,37 de remuneração base, €620 de subsídio de compensação e €1.078,87 de despesas de representação, que correspondem a 20% da remuneração base), para €11.754 (€8.100 de remuneração base, aos quais acresceriam o suplemento de condição de magistrado no valor de €1224 e as despesas de representação no valor de €2430, que correspondem a 30% da remuneração base)”.

Outro dos pontos invocados é o de que, segundo estas propostas, os magistrados judiciais poderiam aposentar-se aos 60 anos.

Os sindicatos insistem, porém, que nem sequer sabem se estas propostas foram as que seguiram para o Ministério das Finanças, até porque a ministra teve de uniformizar os estatutos, frisando por isso que não podem ser vistas como entrave à aprovação dos estatutos. “A última palavra foi da ministra”, referem os responsáveis dos dois sindicatos.

As outras críticas dos juízes

Na carta aberta e para "repor" a verdade dos factos, a ASJP acusa a ministra de ter posto em prática a reforma da organização judiciária "antes do tempo", já que "muitos tribunais não tinham, nem têm instalações adequadas e suficientes.

A estes problemas – referem – acresce o facto de o sistema informático não estar preparado para a reforma operada, não haver funcionários suficientes, nem estar aprovada a legislação necessária para que a reforma entrasse em vigor na plenitude.

Ao referir que os juízes assumiram uma postura de colaboração na execução da reforma, a associação sindical sublinha que a aprovação do estatuto dos magistrados é "indispensável à implementação da reforma".

A ASJP lembra que foi criado um grupo de trabalho para a revisão do estatuto, que integrou várias personalidades, incluindo o secretário de Estado da Justiça, que iniciou funções a 07 de maio de 2014 e que entregou o projecto de estatuto a 11 de Dezembro de 2014. "O alegado atraso na apresentação do projecto, a ter existido, só ao senhor secretário de Estado, que liderava o grupo (…), pode ser imputável, pois, naturalmente, cabia-lhe diligenciar pelo andamento célere dos trabalhos", lê-se na carta aberta da ASJP.

Acrescenta a associação que o projecto entregue pelo grupo de trabalho não é um projecto de revisão do estatuto remuneratório dos juízes, mas um projecto de revisão global do estatuto dos juízes, com modificações profundas "que visam compatibilizá-lo com a nova Lei Orgânica do Sistema Judiciário". O projecto "reflectia essencialmente a preocupação de reforçar a independência dos juízes" e a "independência judicial (…) tem, também, uma componente remuneratória", acrescenta a carta.

A ASJP sublinha ainda desconhecer qual a fonte dos valores apresentados pela ministra na comissão parlamentar, garantindo não serem do projecto apresentado pelo grupo de trabalho integrado pelos juízes. Fontes ligadas ao Ministério da Justiça explicaram ao SOL, porém, que a ministra se referia à proposta dos magistrados do MP e não à dos juízes.

Na mesma carta, a ASJP refere que a estrutura remuneratória dos juízes é "anacrónica e incompatível com princípios básicos aplicáveis a qualquer estrutura da carreira pública", além de que a "promoção dos juízes aos tribunais superiores praticamente não tem reflexo na sua remuneração".

A associação sindical desafia, assim, a ministra a divulgar o projecto de proposta de lei do Governo relativa ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, colocando-o em "verdadeira discussão pública, ouvindo os Conselhos Superiores da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a ASJP e os grupos parlamentares". Desafia ainda Teixeira da Cruz a diligenciar pela aprovação do estatuto em Conselho de Ministros e a agendar a respectiva proposta de lei para discussão no Parlamento.