Bicho da seda

Na próxima terça-feira, dia 9 de Junho, o mundo conhecerá mais do que a já mui controversa e badalada capa da Vanity Fair norte-americana, onde aparece fotografada por Annie Leibovitz, Caitlyn Jenner. 

E por que raio é que uma capa de revista é assim tão importante? 
Porque é a primeira vez que um transgénero chega à capa de uma revista com a envergadura conservadora e arquetípica de uma Vanity Fair. 

Pode olhar-se para isto de forma a desvalorizar a importância que o acto em si tem. E podem encontrar-se justificações muito fáceis para não lhe atribuir a sua verdadeira importância, como o facto de Caitlyn ter sido Bruce Jenner, o famoso padrasto de Kim Kardashian, ou até mesmo pelo facto de provir de uma condição social onde a transição pode ser considerada um capricho ou uma espécie de incursão num novo universo exótico, como consequência do aborrecimento que se vive para os lados de Los Angeles. 

Também se pode olhar para isto como uma manobra de marketing muitíssimo astuta, capaz de movimentar largos milhões de espectadores e de dólares.

Mas também se pode olhar para esta capa de revista com os olhos da minha geração e da geração das filhas mais novas de Caitlyn, e entender isto como algo de elevadíssima importância para a questão da igualdade de género. Eu prefiro olhar para isto de uma terceira forma. 

Embora considere que a minha geração já não é tão retrógrada ao ponto de repudiar a comunidade LGBT, sei que estou muito enganada, porque se a luta existe é porque o preconceito continua activo. Não me cabe na cabeça o não reconhecimento do ser humano. Apenas e só porque não consigo recusar qualquer tipo de contacto com base numa questão que, em última instância, é um pormenor íntimo e que não me diz respeito. A liberdade é precisamente isto, esta noção de harmonia plural. Só que, mais uma vez, sei que ainda estamos muito longe de conseguir seja o que for neste sentido. 

Prefiro olhar para Caitlyn Jenner e fazer uma vénia. 

Numa das declarações já avançadas pela Vanity Fair, Jenner diz: «se estivese no meu leito de morte e tivesse guardado este segredo e nunca tivesse feito nada acerca disto, estaria a dizer 'desperdiçaste a tua vida'». Ora, se passo a vida a ver espalhar mensagens e pensamentos de redenção através da aceitação do verdadeiro eu – de que nunca é tarde de mais e outras coisas dignas de cartilhas pobres da nossa era – e não se aceita a pluralidade, então sabe-se que é tudo trinta e um de boca e que, no fundo no fundo, o aceitar dos outros é diferente, porque mesmo com tanta retórica, é sempre tudo postiço. Parece que nunca há espaço para a verdadeira aceitação do próximo, para a transformação do próximo ou para a descoberta do próximo. 

O egoísmo do nosso tempo. 

Caitlyn revelou que já estava a fazer a transição quando conheceu a mãe das suas duas filhas mais novas, que parou o processo e o retomou após o divórcio, consumado em Abril deste ano. Caitlyn revelou ainda que esperou que as filhas atingissem a idade adulta para que pudessem compreender o seu desejo de mudança e formar a sua opinião relativamente à sua decisão. Tudo isto foi revelado num duplo episódio especial de KUWTK. 

Custa-me muito escrever sobre isto porque me custa bastante que não se viva bem com a pluralidade e com a diversidade. Por isso, é que este texto pode parecer desarticulado, por me custar tanto que não se entenda uma coisa que para mim é fundamental e que sempre fez parte da minha educação. E por outros motivos também. 

Resta-me acrescentar, para os mais cépticos e misóginos, que acham isto uma aberração, que Caitlyn, em primeiro lugar, é um ser humano e que, enquanto Bruce, viveu uma vida digna de um belo macho: estudou na universidade com uma bolsa proporcionada pelo seu talento para o futebol americano, foi campeão olímpico de decatlo, casou três vezes e teve seis filhos. 

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