O armário

João Miguel Tavares é um colunista que aprecio pela independência e pela escrita. E – vá lá – porque se demarca muitas vezes do politicamente correcto e não vai atrás dos esquerdismos acéfalos que afectam boa parte dos nossos colunistas.  

Nem sempre estou de acordo com o que escreve, mas em geral o que escreve é sustentado por uma argumentação criativa e razoavelmente coerente. Pois bem: na semana passada, a propósito da vitória do 'sim' no referendo sobre a legalização do casamento gay na Irlanda, escreveu no Público um insólito artigo incitando todos os gays da política portuguesa a «saírem do armário». De caminho, atira-se a um cardeal do Vaticano que, segundo as suas palavras, «em momento de delirium tremens classificou o facto de uma derrota para a humanidade».

Comecemos pelo cardeal. O homem limitou-se a seguir o que a Igreja Católica sempre disse: que o casamento é entre um homem e uma mulher – e não entre dois homens ou duas mulheres. Alterar isto é um atentado a um sacramento, é um tiro de canhão contra a doutrina católica sobre o casamento e sobre a família, pelo que, objectivamente, é «uma derrota para a humanidade». Para a humanidade tal como a Igreja Católica a concebe, obviamente. 

Não vejo, por isso, que o dito cardeal estivesse a delirar. Aliás, é preciso alguma presunção para despachar sumariamente o que diz um alto representante da Igreja. E estou à vontade para o dizer porque não sou católico. Mas tenho o bom senso de perceber que não é um atrasado mental qualquer que chega a cardeal de uma Igreja com mais de dois mil anos.

Mas o que me interpelou mais na crónica de João Miguel Tavares foi a sua indignação pelo facto de muitos políticos 'não saírem do armário'. Tavares insurge-se como se fosse obrigação de todos os gays dizerem publicamente que são gays. 

O referendo na Irlanda teve «a vantagem de levar um homem como o ministro da Saúde, Leo Varadkar, a assumir publicamente que era gay, por dever de consciência» – escreve o colunista. 

Por dever de consciência? Mas porquê? Já agora, deveria haver uma alínea no currículo de cada pessoa a especificar a sua orientação sexual… E por que não essa importante particularidade vir inscrita no Cartão de Cidadão? Assim, não haveria dúvidas nem fuga possível. Até porque, ainda de acordo com Tavares, «é absolutamente lastimável que neste triste país não se consiga arranjar um único homem ou uma única mulher, do PS, do PSD, do CDS, capaz de assumir de uma vez por todas a sua homossexualidade».

E o estranho é que João Miguel Tavares diz isto como se fosse uma coisa óbvia e não precisasse de argumentar. Para ele, todos os gays deveriam assumir-se publicamente como gays 'porque sim'. 

De caminho, o colunista elogia Manuel Luís Goucha por «se ter assumido». Eu não elogio nem deixo de elogiar. Goucha tinha todo o direito de o fazer – como outros estão no direito de não o fazerem.

Nunca percebi a necessidade que certas pessoas têm de vir a público dizer que são homossexuais. O que temos nós a ver com isso? Estou-me nas tintas para saber se um político é ou não é gay. Não passa a ser melhor nem pior por isso. E não vejo qualquer vantagem em expor a sua intimidade na praça pública. 

Ainda percebo que os homossexuais gostem que outros homossexuais se assumam publicamente como tal. Porque acham que alguém assumir-se como gay, sobretudo se for uma pessoa conhecida (um actor, um apresentador de televisão, um desportista), tem um efeito multiplicador, contribuindo para o crescimento da 'causa' da homossexualidade. Os comunistas também gostam, por exemplo, que Carlos do Carmo se assuma como comunista. Ou os benfiquistas que Paulo Gonzo se diga publicamente do Benfica. 

Percebo, portanto, que a comunidade gay incite os gays a saírem dos armários e façam disso uma questão decisiva. Mas que têm a ver com isso os que não são gays? 

Respondendo à questão, João Miguel Tavares poderia dizer que, embora não sendo homossexual, acha que estes têm o dever de se assumir – porque, quantos mais forem, menos discriminados serão. 

Mas a verdade é que ele nem sequer usou este argumento. E se usasse, eu responderia que esse é um problema 'instrumental', prático, que não deve sobrepor-se às questões de princípio. E aí, insisto: todos têm direito à reserva da sua vida privada e não têm nenhuma obrigação de virem a público dizer se são homossexuais, heterossexuais, bissexuais, bígamos ou indiferentes.

Aliás, sempre achei que o 'orgulho gay', as 'paradas gay' são um perfeito disparate. Orgulho porquê? Se, como os próprios dizem, ser homossexual é qualquer coisa independente da vontade, não se percebe que seja motivo de orgulho. Orgulho tem-se naquilo que foi obtido com o nosso esforço e o nosso trabalho. 

A admitir-se a parada do 'orgulho gay', teria de se aceitar uma parada do 'orgulho heterossexual' – com machos de fartos bigodes e abundantes pêlos no peito a desfilarem pelas ruas. 

Poupem-nos a estas manifestações!

João Miguel Tavares esforça-se por não ser politicamente correcto, mas nestes temas 'fracturantes' é uma maria-vai-com-as-outras. 

Aliás, as contradições abundam nesta área. 

Sócrates, um dos políticos que mais se bateram pelos direitos dos homossexuais, apanhou uma fúria quando sugeriram que era homossexual – e dava isso como exemplo sempre que o acusavam de qualquer coisa. Como se uma acusação de homossexualidade fosse, para ele, o pior insulto que se pudesse fazer a alguém. 

Deixemos, portanto, os homossexuais descansados dentro dos seus armários, desde que seja essa a sua vontade. E já agora os heterossexuais. Quem sente necessidade de o dizer, que o diga. Quem sente necessidade em assumir-se, que se assuma. Mas que não se obrigue ninguém a fazê-lo. Não se retire a ninguém a liberdade de preservar a sua intimidade. 

E não se fale de orgulho em ser gay. Porque, a aceitar-se este orgulho, está a legitimar-se o orgulho oposto. E a aceitar-se a prosápia de Zezé Camarinha louvando as virtudes do macho lusitano. 

jas@sol.pt