Rui Vitória, o treinador que proibia o autocarro do Fátima de fazer marcha-atrás em dias de jogo

Durante quatro anos viajou mais de 200 quilómetros por dia, por vezes ‘à boleia’ dos jogadores, para fazer o que mais gosta: dar aulas de educação física e treinos de futebol, algo que nunca tinha sido um obstáculo no comando técnico do Vilafranquense e dos juniores do Benfica.

Rui Vitória, o treinador que proibia o autocarro do Fátima de fazer marcha-atrás em dias de jogo

Um convite do Fátima, em 2006, alterou as rotinas de Rui Vitória, o homem agora escolhido por Luís Filipe Vieira para suceder a Jorge Jesus. O professor licenciado pela Faculdade de Motricidade Humana aceitou desdobrar-se entre a Escola Secundária Gago Coutinho, em Alverca, onde residia, e o relvado do Estádio Municipal de Fátima. De manhã dedicava-se aos alunos e à tarde aos futebolistas, com a auto-estrada A1 pelo meio.

Na companhia de Arnaldo Teixeira, adjunto e amigo de longa data que também seguirá com ele para o Benfica, faziam-se à estrada numa carrinha do clube. Horas depois, já de noite, o caminho inverso de volta a casa. E o que começou por ser uma solução de recurso depressa se tornou uma ‘opção técnica’: vários jogadores do plantel começaram a aproveitar as boleias dos misters e, a certa altura, a função de motorista de Rui Vitória passou a rodar por todos.

“Se fosse outro treinador se calhar não se misturava com os jogadores”, diz ao SOL João Fonseca, um dos que beneficiou das boleias e por certo o jogador que mais tempo esteve às ordens de Rui Vitória: dois anos nos juniores do Benfica e quatro no Fátima. “É o melhor treinador que já tive”, atira o médio de 28 anos, hoje emigrado em França, onde joga nos Lusitanos de Saint-Maur.

À medida que se acumulavam quilómetros e portagens na A1, crescia a empatia com o plantel do Fátima. O convívio que Rui Vitória criou à sexta-feira, com um ‘banquete’ de frango assado no balneário para jogadores e equipa técnica, também terá ajudado. A juntar aos treinos dinâmicos e diversificados, acabaram por ir todos ‘à bola com ele’.

“O Rui é uma pessoa extremamente competente, tanto na parte do treino como ao nível psicológico e na ligação aos jogadores”, atesta ao SOL Nuno Domingos, treinador de guarda-redes que integrou a equipa técnica de Rui Vitória em Fátima.

Como principais trunfos, o antigo adjunto destaca-lhe a capacidade para organizar as equipas, “tanto a atacar como a defender”, em função de “um futebol objectivo”. Mas acima de tudo elogia-lhe a determinação e mentalidade vencedora, por vezes traduzida numa superstição rodoviária.

“Em dias de jogo, o autocarro do clube nunca podia fazer marcha-atrás com jogadores e treinadores lá dentro. Uma vez obrigou-nos a sair cá para fora. Ele dizia: ‘Não gosto de recuar, comigo é sempre para a frente’”, conta Nuno Domingos.

Quando se dirige aos seus pupilos, é frequente ouvir Rui Vitória dizer-lhes “para não serem como as lâmpadas de casa, que por vezes ficam intermitentes”, pois do primeiro ao último minuto de jogo “têm de estar sempre ligados”. Outra imagem a que recorre para despertar os mais ‘adormecidos’ é lembrar-lhes que “o chip tem de estar sempre activado”.   

Rui Vitória sabe o que é estar do outro lado, uma vez que também ele calçou em tempos as chuteiras nas divisões inferiores. E como treinador chega a arriscar mostrar os seus dotes em peladinhas de descompressão.

“Ele foi médio centro e muitas vezes armava-se nos treinos. Nós víamos que tinha qualidade, mas já não era o mesmo. Às vezes caía ou falhava a bola e outras vezes tentava correr e não conseguia. Dava sempre risota”, recorda João Fonseca, garantindo que o técnico revelava poder de encaixe perante a situação.

Os resultados não tardaram a aparecer. Em 2008/09, o Fátima conquistou o título de campeão da 2.ª Divisão (o terceiro escalão) e subiu pela primeira vez à 2.ª Liga. Na época anterior tinha eliminado o FC Porto na Taça da Liga.

O sucesso no Fátima não passou despercebido e saltou para a 1.ª Liga, ao serviço do Paços de Ferreira. Em 40 anos nunca tinha saído da sua zona de conforto, o Ribatejo, e viu-se obrigado a despir o fato de professor. Pediu uma licença sem vencimento na escola e embarcou na primeira experiência como treinador a tempo inteiro.

“Dizia sempre que brincava aos treinadores porque tinha outra profissão. A partir do momento em que fui para o Paços é que pensei: ‘Vivo disto’”, afirmou em 2013 numa entrevista ao site zerozero.pt.

Logo no jogo de estreia, em Agosto de 2010, bateu o Sporting de Paulo Sérgio (1-0). Terminou no sétimo lugar do campeonato, a um ponto dos lugares europeus, e levou o Paços à final da Taça da Liga, perdida para o Benfica (2-1). Ao fim de três jogos na temporada seguinte, recebeu uma proposta “irrecusável” do Vitória de Guimarães e por lá se manteve até agora.

Com os cofres do clube quase vazios, o técnico preencheu as lacunas do plantel com jovens da formação e dos clubes vizinhos. Em quatro anos, conquistou uma Taça de Portugal (2013) e devolveu o estatuto europeu ao Vitória.

Baterista e imune a despedimentos

Nuno Assis, que jogou no Benfica e integrava a equipa na chegada de Rui Vitória a Guimarães, não esconde a sua admiração pelo treinador. “Ele criava uma empatia muito grande com o balneário porque é uma pessoa muito simples, com uma personalidade forte, mas de fácil acesso. Sabe bem aquilo que quer, é fiel às suas ideias e a mensagem que passa para os jogadores é muito boa”, sublinha ao SOL o médio de 37 anos, hoje nos cipriotas do Omonia.

A proximidade com os jogadores, à semelhança do que se verificou em Fátima e em Paços de Ferreira, é uma característica que deixou marcas na cidade berço. “Ele faz algo muito importante que é perguntar logo no primeiro treino da semana a opinião dos jogadores sobre o último jogo. Discutíamos entre nós o que havia a melhorar e o que tínhamos de corrigir, o que se tornou bastante interessante”, diz Nuno Assis.

Ao longo das 13 épocas que leva como técnico, Rui Vitória nunca foi despedido, mas na Luz irá enfrentar, aos 45 anos, a maior prova de fogo da carreira. Com a certeza de que, se por acaso correr mal, quem vai pagar é a bateria que tem em casa. É nela que gosta de descarregar o stresse.

hugo.alegre@sol.pt