Confraria Gastronómica ‘O Moliceiro’

Em tempos idos, era nos Moliceiros que se transportava o “moliço” que se apanhava na ria e que servia para fertilizar as terras agrícolas de toda a região de Aveiro. Difíceis os tempos, era o Moliceiro, muitas vezes, a casa onde vivia uma família na qual todos ajudavam nas tarefas de trabalho. De tão farto…

Passados os tempos em que se vivia do que a Ria dava, passou o Moliceiro a ser um símbolo. Celebrado nas artes como uma marca dos territórios da Ria, o Moliceiro foi a inspiração para a constituição de uma Confraria (das primeiras no movimento confrádico) que através dele faria em juramento a defesa de todo o ambiente cultural e gastronómico associado aquele monumento geográfico. Foi na Murtosa, em Fevereiro de 2000, que nasceu a Confraria Gastronómica "O Moliceiro". Tendo sido este município um espaço privilegiado na construção e trabalho destas famosas embarcações, pensaram estes confrades conseguir, assim, chamar a atenção para os moliceiros e para o património paisagístico, gastronómico e cultural que eles representam.

Vestidos de gabão preto, exibem ao peito um barco moliceiro em bronze que pende de uma corda com nós de marinheiro. São homens e mulheres da Ria que sentem o pulsar da vida que ali cresce. Ainda que na contemporaneidade, a Ria ainda continua a marcar as suas vidas e, por isso, não raras  vezes juntam-se ao fim-de-semana na sua sede, no Cais da Ribeira de Pardelhas, onde brindam os sentidos com os petiscos que a Ria dá. As enguias servidas, ora fritas com molho de escabeche, ora em sopa ou em caldeirada chamam os amigos que estes confrades vão conquistando pelo país. A lampreia tem a honra de ser servida em arroz ou à bordalesa e o sável serve-se frito com molho de escabeche.

Em reconhecimento desta riqueza gastronómica, esta Confraria desenvolve, por alturas de Março ou Abril, o Festival Gastronómico da Lampreia e do Sável e, em Outubro, o Festival Gastronómico da Enguia. Na verdade, a força desta Confraria é a força do grupo, pois todos contribuem para um plano de actividades que contempla, ainda, os passeios de cicloturismo e as caminhadas no ambiente plano, calmo e tranquilo das margens da Ria e os passeios gastronómicos em plena Ria a bordo dos barcos moliceiros. Recebem na Ria como ninguém e com eles conhecemos a sua geografia, a sua fauna e a sua flora para além dos cartazes turísticos.

Murtosa, município do centro litoral inserido na Ria de Aveiro, alberga inúmeros esteiros, ribeiras, cais e ancoradouros que se interligam pelos trilhos da NatuRia. São percursos que se podem fazer a pé em tranquilas caminhadas ou de bicicleta sentindo as diferenças dos espaços da Ria. Num município onde a bicicleta é um meio de transporte alternativo muito acarinhado, os visitantes são convidados a utilizá-la e a descobrir um mundo que o automóvel não deixa sentir. Da parte das autoridades municipais sente-se a convicção e a vontade em afirmar este território como um local apetecível e privilegiado para a utilização da bicicleta como transporte e, por isso, foram e continuam sendo feitos investimentos que favorecem esta causa.

A Ria deu muito à Murtosa e é, ainda, hoje promotora das principais actividades que sustentam a população, a pesca e a agricultura. A indústria conserveira da Murtosa assume, igualmente, grande destaque, sobretudo, as conservas de enguias que fazem a imagem de marca deste sector económico murtoseiro. Embaladas e decoradas com motivos locais, as conservas têm grande história na Murtosa tendo sido inaugurado recentemente a COMUR – Museu Municipal da Murtosa. Neste espaço pode-se descobrir como nasceu e se desenvolveu a indústria conserveira na Murtosa e como se transformou num símbolo identitário local.

A Ria de Aveiro espalha-se por um amplo território e na Murtosa assume características próprias que o povo murtoseiro soube aproveitar. A Confraria Gastronómica "O Moliceiro" é também prova dessa singularidade na idiossincrasia que apresenta. Um grupo de confrades que se distingue pela força de trabalho que imana, pela certeza com que constrói relações com os outros, pelo orgulho que mostra da sua terra, pela simpatia com que recebe a beleza e o sabor de outras confrarias. A fraternidade e a amizade vivem-se aqui como se fossem feitas de nós de marinheiro. Indestrutíveis, que prendem sempre que é preciso, que largam sempre que tal se mostra necessário.

Para conhecer melhor esta confraria, o que vale mesmo a pena é ir até ao Cais da Ribeira de Pardelhas na Murtosa saborear na companhia destes confrades uma boa caldeirada de enguias. Lá mesmo, sob a sombra dos pinheiros mansos, nas mesas de madeira que têm a luz, os cheiros e as cores da Ria como testemunhas, descobre-se porque é que a Confraria "O Moliceiro" defende os sabores da Ria. Descobre-se porque o Moliceiro abraça aquele povo, é nele que este canta e vive a vida, é nele que se encontra a magia do encontro entre o céu e terra que se faz pela Ria.

* Presidente das confrarias gastronómicas portuguesas