A cidade do futuro é das pessoas

Toda a gente faz uma ideia do que é a cidade do futuro. São sítios cheios de névoa, cruzados por veículos aéreos como no Blade Runner, onde as tarefas repetitivas são executadas por robots e onde uma voz autoritária controla a vida dos cidadãos, como em 1984 de George Orwell. Nessas ‘cidades do futuro’ as…

Não tem que ser assim, acredita Álvaro Oliveira, o CEO da Alfamicro, empresa que – juntamente com a Imatch, Update cities e Pointify – organizou o congresso Agenda Forum Beyond 2020 'Building Human Smart Cities' onde estarão em Lisboa esta semana (22, 23 e 24) autarcas, especialistas mundiais em urbanismo, em inovação e, sobretudo, em formas de redefinir a sociedade e a democracia usando as novas tecnologias de informação. Entre eles estarão o ministro das Cidades brasileiro, representantes do Banco Mundial e da organização Democracy 2.1 e também Lex Paulson, actualmente a fazer doutoramento na Sorbonne, mas que se tornou conhecido como consultor de Obama na campanha que o tornou presidente dos EUA. E estarão também os presidentes das câmaras de Lisboa e do Porto, autarcas de várias cidades europeias, e membros do Governo português, como o ministro do Desenvolvimento Regional.

Uma série de académicos e políticos a fazer discursos sobre o que será o futuro? É muito mais que isso, garante Álvaro Oliveira, e é muito mais concreto. “Este congresso é apenas um dos aspectos de um empreendimento antigo e vasto”. E será também um momento de troca de conhecimento recolhido em experiências reais em vários pontos do planeta de 'human smart cities', de projectos inovadores na organização das cidades, uma mudança que já está em marcha. A própria Comissão Europeia (CE) é um dos patrocinadores do congresso.

O Facebook das cidades

“O 'humano' é muito importante nesta equação”, não se cansa de enfatizar Álvaro Oliveira, doutorado em Comunicações pelo University College, a reputada instituição londrina por onde passou o pai da electrónica, John Ambrose Fleming.

“As smart cities não correram nada bem. As cidades desenvolvidas só à base de tecnologia,como Mazdar, no Médio Oriente, ou Songdo, na Coreia do Sul, são um fracasso. Quem as desenhou não pensou nas pessoas e agora ninguém  quer ir para lá. São cidades fantasma, criadas para o enriquecimento de grandes tecnológicas”. Como é que se introduz o factor humano? Põe-se as pessoas a falar umas com as outras, como num bairro à antiga, mas agora usando o melhor meio de comunicação do momento: a internet.

A Alfamicro, uma empresa sedeada em Cascais e que nasceu nos anos 80, irá apresentar no congresso o projecto de que é responsável, o MyNeighbourhood, uma plataforma online, mas que não é exactamente virtual. “Existe o site como ponto de encontro, mas o objectivo é pôr em contacto os habitantes de um bairro para que eles próprios definam as formas de se relacionarem e como querem decidir a vida do bairro, de forma muito pragmática”. Trata-se, diz, de um “um instumento para mudar a democracia. Não é uma rede social puramente virtual. Encoraja as pessoas a encontrar-se cara a cara e a criarem projectos juntas no mundo real. Transforma-lhes as vidas”. Isto vai ser o Facebook das cidades, garante. 

Desde Setembro de 2014, o MyNeighbourhood implantou-se em Marvila, a enorme freguesia lisboeta com quase 40 mil habitantes. A AGIR XXI, uma ONG para a inclusão social criada em 2002, é uma das envolvidas no projecto. E é lá que funciona um ateliê de costura – que já fez os figurinos dos Storytailors para a peça Amadeus, no Dona Maria II, em 2011 – e que dá formação e estágio (em parceria com o Instituto do Emprego e Formação Profissional) a desempregados, faz arranjos, e dá workshops.

Fernanda Ferrão, costureira e uma das formadoras, não tem dúvidas de que desde que o www.my-n.eu está a funcionar em Marvila há mais pessoas do bairro a franquear os portões da AGIR e a encomendar a subida de uma bainha ou a inscrição num workshop de modelagem. Fátima Quintas, uma das fundadoras desta ONG sedeada na Rua do Vale Formoso mas que presta serviços para todos os que a procurem, explica que o projecto MyNeighbourhood tem estado a dar apoio na criação de um plano de negócios  para a associação e a torná-la mais visível. “Muitas vezes as pessoas não percebem o que têm ao lado da sua própria porta”, diz Fátima Quintas. A visibilidade da AGIR fez-se também com a pintura do muro, antes cheio de tags, e que agora chama a atenção para a oficina de costura. O muro foi pintado com um desafio lançado no site do www.my-n.eu a que acorreram uma dúzia de jovens numa alegre tarde de sol.

O Made In, ou seja, a criação de uma marca, é uma das vertentes do MyNeighbourhood. Na Mouraria, onde foi o primeiro projecto na capital, João Guedes, um dos jovens moradores, habilidoso na pastelaria, criou os pastéis da Mouraria e graças ao empurrão do projecto conseguiu comprar uma carrinha e montar um esquema de distribuição. Hoje vive disso e será um dos fornecedores do catering do congresso.

Na AGIR está também em desenvolvimento uma marca Made In. E os exemplos da confecção do ateliê de costura (que tem encomendas, por exemplo, do Conservatório de Música) vão desde uma forra para garrafas de vinho para provas cegas, a vestidos de criança com capulanas ou uns práticos lenços de amamentação.

Mas é o Serviço Ó Vizinho a parte mais curiosa e imediata. É uma espécie de rede social mas onde não há selfies e vídeos de gatinhos. É, como se percebe, um ponto de troca. Tal como antes se pedia um pé de salsa ao vizinho da frente, agora pede-se a colaboração abrindo um computador e alargando o círculo. 

Do Spectrum ao bairro

'Lembra-se do Spectrum?' pergunta. “Eu sou o 'manufacturing father' do Spectrum”, diz, Álvaro Oliveira, com recurso ao inglês que lhe sai amiúde. E conta a história da sua carreira como algo em que está tudo ligado e onde o ponto de partida justifica o momento presente. Em 1974, Álvaro Oliveira inscreveu-se no University College em Londres como aluno de doutoramento, num altura em que a tecnologia começava a mudar para fibras ópticas. Ao mesmo tempo, a mulher fazia uma pós-graduação em lixo nuclear e descobriu que a 400 km da costa portuguesa, no mar, eram lançados resíduos nucleares, uma prática considerada erradamente segura devido a um erro de cálculo. A descoberta tornou a investigadora mediática. E o adido cultural em Londres conheceu o casal e perguntou a Álvaro Oliveira o que ele fazia. Pediu-lhe para regressar a Portugal, contribuindo para o esforço de modernização do país, então nas vésperas de entrar para a CEE. Álvaro Oliveira trocou a ida para o Naval Research Lab, na Califórnia, onde o seu currículo se encaixava, por um cargo de topo nos CTT, onde seria responsável pela montagem das infraestruturas de fibras ópticas.

Seria depois contactado pela Timex, a multinacional que em Portugal tinha uma pequena linha de montagem de relógios em fase de declínio, e que aproveitaria a fábrica para produzir os Zx Spectrum. E é convidado para dirigir essa operação. Em Outubro de 1983 na Charneca da Caparica fazia-se dez mil computadores por dia. Os tais Spectrum, de que Álvaro Oliveira se intitula o 'pai fabricante' em Portugal.

Ao fim de dois anos a fábrica seria 'deslocalizada', como se diz hoje, para zonas de mão de obra mais barata: o Extremo Oriente. E, entretanto, nasce a Alfamicro a produzir jogos para computador, sobretudo didácticos. Até ao dia em que uma empresa sueca fabricante de caixas de supermercado contrata a Alfamicro, que lhe oferece uma solução mais barata. “De 132 chips propusemos uma máquina com apenas dois. Foi uma notícia de telejornais”. O CEO é entrevistado e critica a falta de estratégia portuguesa na sociedade de informação.

Mira Amaral, então ministro de Cavaco, desafia-o a ajudar a montar essa estratégia. “Foi uma grande janela de oportunidade. Tal como aconteceu várias vezes na minha vida”, sorri. Era preciso preparar as candidaturas aos fundos. “Nunca fiz parte do Governo, fui consultor. E criámos a metodologia que veio a dar na AutoEuropa e nos clusters do calçado, por exemplo”. A vida da Alfamicro começou a ser isto: “Envolver as universidades, as empresas e a investigação na área da electrónica, engenharia e consultoria que ao nível da empresa quer ao nível do país”. Fruto da ligação aos projectos europeus, Álvaro Oliveira tornou-se consultor da Nokia, onde se começou a pôr em prática os living labs, laboratórios vivos onde se ouviam os clientes antes de serem lançados produtos no mercado. “Esta metodologia serve para tudo. As pessoas é que sabem o que querem. Se aplicarmos isto à política estamos a inovar a democracia”. Quando em 2006 a Finlândia assumiu a presidência da União Europeia, esta metodologia de inovação já era prática corrente naquele país. E um dos temas da presidência finlandesa foi o dos living labs. “E eu fui convidado para a redacção do Manifesto de Helsínquia, o instrumento político para lançar os living labs a nível europeu. Depois fui presidente da rede europeia de living labs durante os primeiros mandatos”, conta.

É uma rede que hoje tem 370 'laboratórios vivos', que agrega 25 mil empresas (desde grandes como a Siemens a outras pequenas). Já na presidência da European Network of Living Labs, Álvaro Oliveira lembrou-se de que se a inovação acontece nas organizações, por maioria de razões deveria estar nas cidades, onde hoje vive mais de 50% da população mundial. “Temos que fazer das cidades locais mais felizes. Propus à Comissão Europeia um pojecto. E com o conceito de human smart cities, a CE apoiou 21 projectos, que envolveram cerca de 70 cidades”. E a plataforma comum é a Fiware, criada pela Comissão Europeia , e que “é a única resposta europeia e aberta – o que significa que toda agente pode aceder – às plataformas fechadas norte-americanas, em que o utilizador paga tudo”. 

Quanto ao MyNeighbourhood, alojado também na Fiware, é co-financiado pela CE.  Os fundos são entregues às autarquias para montagem dos projectos e a Alfamicro é o coordenador deste consórcio europeu e parceiro tecnológio. Neste momento já foram criadas parcerias com 25 bairros em cidades como Lisboa, Milão, Florença, Aalborg, na Dinamarca, Birmingham, no Reino Unido. Em Lisboa foi implantado na Mouraria e em Marvila. Londres será a próxima cidade. 

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