Crianças acolhidas em famílias e não em lares

Nova lei prevê acolhimento familiar de crianças até aos seis anos, mas não há famílias disponíveis.

O Governo quer que as crianças até aos seis anos que são retiradas aos pais sejam integradas em famílias de acolhimento em vez de irem para instituições. O objectivo é dar-lhes um ambiente acolhedor enquanto aguardam uma solução para o futuro, que pode passar pelo regresso a casa ou pela adopção. Mas esta aposta da nova lei de promoção e protecção, em debate no Parlamento, pode não passar do papel se continuar a ser difícil recrutar famílias para cuidar destas crianças (em Lisboa, por exemplo, tem sido impossível).

O acolhimento familiar já está previsto na lei actual para todos os menores, mas raramente é aplicado pelos juízes porque não há  famílias disponíveis. A nova lei quer agora que seja privilegiada «a aplicação da medida de acolhimento familiar sobre a de acolhimento residencial, em especial relativamente a crianças até aos seis anos de idade». Mas quem está no terreno duvida que colocar esta intenção na lei seja suficiente para tornar a medida uma realidade.

Em 2013, havia só 374 crianças integradas em famílias de acolhimento – 4,4 % dos menores que estão no sistema de acolhimento. São quase todas do norte do país e em Lisboa não há nenhuma. Segundo a Segurança Social, 90% dos menores que em 2013 estavam à guarda do Estado (7.530) viviam em lares e centros de acolhimento, instituições com dezenas de menores e onde o acompanhamento é feito por técnicos.

Temem afeiçoar-se à criança

«Os tribunais não decretam esta medida porque não há uma bolsa de famílias», disse ao SOL Teresa Antunes, responsável pela unidade de adopção, apadrinhamento civil e acolhimento familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, responsável por este serviço na capital. «Fizemos várias tentativas para sensibilizar as pessoas, mas estas desistem quando percebem o nível de compromisso que isso  exige», acrescenta. Teresa Antunes considera que a falta de informação não justifica a inexistência de famílias em Lisboa e aponta outras razões: os casais temem afeiçoar-se à criança que depois têm de entregar e são pouco receptivos a uma das missões da família de acolhimento que é facilitar, e até mediar, a relação da criança com a família de origem. Isto porque o objectivo é esta regressar a casa quando os pais tiverem condições para recebê-la.

O facto de não saberem que criança virá, quando e por quanto tempo são outros factores que dificultam a adesão dos casais. «A lei diz que é uma medida transitória mas na prática as crianças acabam por ficar algum tempo», acrescenta Teresa Antunes. A Segurança Social diz que 60% das crianças ficam mais de cinco anos em acolhimento.

Muito diferente da adopção

Há também muita confusão entre acolhimento familiar e adopção, diz ao SOL Celina Cláudio, da Mundos de Vida, associação que recruta, forma e acompanha 114 famílias de acolhimento no norte do país. «São motivações completamente diferentes: quem quer adoptar quer um filho, tem um desejo de maternidade. Aqui trata-se de abrir a porta de casa e receber uma criança». Por isso, quem se alista para ser família de acolhimento não pode ser candidato à adopção. «Se assim fosse, a família de acolhimento não iria promover o contacto com a família biológica e podia até boicotá-lo», alerta Celina Cláudio. A lei não deve por isso baralhar estes dois conceitos, defende a técnica, e as famílias de acolhimento devem ser proibidas de adoptar: «Senão, seria uma subversão do sistema e as pessoas poderiam encarar isto como uma via mais rápida para a adopção».

O Instituto da Segurança Social explicou ao SOL a que as famílias candidatas ao acolhimento são submetidas à «aferição de critérios pré-definidos e transparentes, incluindo a avaliação das suas capacidades do ponto de vista dos cuidados a prestar». E sublinhou que o objectivo «é a prestação dos cuidados à criança até ser possível a sua reintegração na família biológica, a sua autonomização ou a sua integração numa família candidata à sua adopção». As famílias candidatas são por isso habilitadas «para acolher e não para adoptar».

A lei prevê a possibilidade de a criança ser adoptada se não houver condições de regressar à sua família. Mas nesse caso, não será a família de acolhimento a adoptá-la mas outra que conste da lista de candidatos à adopção.