Confraria Gastronómica do concelho de Ovar

Cidade grande pela diáspora varina que se sente por Portugal e não só, faz notar o fresco da proximidade do mar e dá um cheirinho de ria ao albergar um dos seus braços. É, por isso, território de água sendo que os ovarenses, ovarinos, varinos ou vareiros, designações dos naturais de Ovar, apreciam sobremaneira esta…

É esta relação entre a terra, o mar e a ria que se sente na gastronomia que caracteriza esta região. É uma gastronomia que traduz uma relação tríplice e abarca várias dimensões, que se conjugam e se reinventam desde sempre. Da terra temos as hortaliças, o porco e o pão. Do mar e da Ria, os peixes, os moluscos e o sal. A raça Marinhoa, cuja docilidade facilitava a utilização como animais de trabalho no arar das terras e o puxar das redes das companhias de pesca no mar, é hoje também consumida pela excelência da sua carne. Sobejamente conhecido, o pão-de-ló de Ovar distingue-se dos demais pelo seu interior húmido, e sabor intenso e de textura delicada. É uma gastronomia diversificada que integra o peixe, mas também a carne e possui este ícone da doçaria nacional, talvez o símbolo maior da cidade, da categoria dos húmidos, mas inconfundível. Falar da gastronomia de Ovar é salivar, sobretudo, por este pão-de-ló, sem dúvida.

É esta diversidade que a Confraria Gastronómica do Concelho de Ovar se propôs a defender, sem dar tréguas à descaracterização ou ao esquecimento das antigas práticas na preparação da boa gastronomia varina. Apesar da incessante inventariação no receituário, arte e técnica da cozinha tradicional com vista à elaboração da Carta Gastronómica do Concelho, não descura esta confraria a inovação. Por isso, têm sido entusiastas de novidades como os derivados do pão-de-ló de Ovar ou do Senhor Chocolate, este último um pão-de-ló ao qual é adicionado cacau. De resultados surpreendentes, estas inovações têm merecido a atenção e o destaque do trabalho desta confraria para quem a gastronomia é uma arte viva que  tem a sua história mas que deve ser dinâmica e criativa.

Trajados de Gabão Varino, peça do traje tradicional utilizado por todas as classes sociais na região vareira, estes confrades não esqueceram no rol das suas actividades que desenvolvem desde 2010, data da fundação da confraria, que a defesa da gastronomia faz-se muito pelo contacto com os mais novos, na interacção com quem irá fazer o futuro de Ovar. Por isso, desenvolveram o projecto “A Confraria vai à Escola” fazendo a divulgação entre o público infanto-juvenil da singularidade da gastronomia vareira pretendendo, assim, contribuir decisivamente para a afirmação da identidade do povo do concelho de Ovar.

A fraternidade, característica identitária nas confrarias e factor de coesão e respeito entre confrades, é levada muito a sério por este grupo, que não esquece que o alimento sobre a mesa escasseia em algumas famílias da terra. Tendo em mente que na fome somos todos iguais e que a escassez exige uma distribuição ponderada da abundância, contribuíram na organização da iniciativa ‘Maior Cabaz Solidário’, que permitiu a distribuição de 350kg de alimentos não perecíveis entre famílias carenciadas residentes em Ovar. Iniciativa notável para uma confraria gastronómica que toma bem conta de que a alimentação é para todos.

A salicórnia, a camarinha e a raça Marinhoa, enquanto produtos endógenos, e outras práticas gastronómicas de Ovar, têm merecido um profundo trabalho de levantamento e de referências onde se conjuga o património material e imaterial. Actualmente, a Confraria Gastronómica do Concelho de Ovar desenvolve um projecto em redor da Rosca Doce onde esta é descrita e caracterizada, quer na sua receita e saber-fazer, como nas histórias e figuras a elas associadas. O destino de toda esta informação será a divulgação através da publicação em fascículos coleccionáveis.

Já palpável e quase tão saboroso de ler como saborear um pão-de-ló de Ovar é a leitura da publicação À Mesa com Júlio Dinis. Da iniciativa da Confraria Gastronómica do Concelho de Ovar para comemorar os 175 anos do nascimento de Júlio Dinis, autor bem conhecido que viveu alguma da sua vida em Ovar, esta publicação revisita as obras mais significativas deste autor nas cenas de mesa ou em que alimentação adquire destaque. Percebemos, assim, o que se comia na escassez e na abundância. O que eram os mimos, as gulodices daquele tempo. Ao mesmo tempo que conhecemos as descrições de Júlio Dinis somos presenteados por uma forma inovadora de apresentar os mesmos alimentos na perspectiva do Chef Luís Lavrador. A rematar, esta obra, fazemos uma pequena viagem pela história da alimentação, história tão necessária conhecer nestes tempos em que a gastronomia adquiriu estatuto de vedeta e de estrelato. Conhecer a história dos alimentos diz-nos da intemporalidade da gastronomia e como é fascinante descobrir que outros, antes de nós, foram geniais na utilização das matérias-primas e dos condimentos. Somos penhor dessa genialidade. Bebemos dela e as nossas práticas gastronómicas não são mais do que a revisitação desta genialidade.

De tridente na mão, símbolo inspirado num dos monumentos da cidade de Ovar, o Chafariz de Neptuno, os confrades desta confraria erguem-no com uma tripla intenção. Defender a dádiva do mar, da terra e da mesa. Dádiva que em Ovar é levada muito a sério, como um prenúncio feliz do que hoje faz a riqueza gastronómica deste Concelho. Na cidade do azulejo em que as cores do verde, amarelo e do azul se espraiam nas paredes das habituações vareiras, a gastronomia exulta essa mesma cor e resplandece no sabor de quem sabe que ela é sua.

* presidente das confrarias gastronómicas portuguesas