A colecção da democracia

Cresceu a poder beber coca-cola em Badajoz (a bebida era mal vista pelo regime), a ver passar os carros de último modelo que levavam os figurões da capital para Espanha e a cultivar amizades com miúdos que falavam outra língua. Elvas nos anos 60 não era uma cidade cosmopolita, mas também não era exactamente tão…

O mais velho de oito irmãos, filho de pai comerciante e mãe doméstica, António Cachola gostava de jogar à bola e participava em grupos de teatro juvenil. Não havia artistas, nem coleccionadores, nem grandes fortunas na família que justifiquem o facto de hoje, aos 61 anos, ele ser o maior coleccionador dos artistas contemporâneos que começaram a produzir após os anos 80 – “a geração da democracia”, como lhe chamou Delfim Sardo, o curador e director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém entre 2003 e 2006.

E foi a Colecção Cachola (actualmente com cerca de 600 obras) que levou à criação em 2007 do Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE) – para se ter ideia, o mesmo ano em que o Museu Berardo nasceu em Lisboa, oito anos depois da inauguração do Museu de Serralves. E nascido muitos anos antes dos vários museus capazes de atrair visitantes nas cidades de província, como é hoje o caso do Centro Internacional das Artes José Guimarães, em Guimarães.

Em vésperas de comemorar dez anos, o MACE apresenta-se em Lisboa com um ciclo de oito exposições na Galeria Chiado 8 – em frente à Brasileira – que começou no passado dia 29 de Maio com uma mostra de João Onofre, todas comissariadas por Delfim Sardo, terminando o ciclo em 2017.

António Cachola licenciou-se em Economia no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e, terminado o curso, foi convidado pela família Nabeiro, para trabalhar na Delta Cafés, em Campo Maior. “Não me arrependo da decisão, porque a verdade é que podia ter ficado na capital, e tudo levava a que o fizesse. A vida em Lisboa era aliciante, mas percebi que a Delta era uma empresa inovadora, com um grande potencial de crescimento. E acho que crescemos juntos”. Actualmente, António Cachola é administrador financeiro do grupo e, a viver a 200 km da capital, diz que tem a sorte de ter o melhor de dois mundos, mas na altura certa. “Muitos dos meus amigos vivem e trabalham em Lisboa e passam os tempos livres no Alentejo. Eu estou muito melhor. Elvas é um sítio óptimo para viver e é ao fim-de-semana que posso desfrutar de Lisboa”, diz, numa das ocasiões em que aproveita para ver três exposições de enfiada. Ao longo dos anos tem feito isto.

O momento inaugural da sua relação com as artes visuais terá sido em 1973, quando fez as primeiras viagens ao estrangeiro (Espanha não contava, uma vez que era a dois passos de casa). Com 19 anos foi a Londres e nos museus viu pessoas felizes. Em 1974, numa viagem com amigos por vários países da Europa conferiram a ideia de que “há uma verdadeira alegria no acto de ver arte”. Imaginou-se a fazer uma colecção “para ser mostrada. Porque a arte só existe verdadeiramente no confronto com o público”.

No início da década de 90, iniciou a aquisição de obras de artistas que começaram a produzir e a expor nos anos 80, e com um objectivo maior do que decorar a sua sala de estar e mostrar aos amigos. Ganhou o hábito de frequentar os ateliês de jovens artistas, de falar com eles e, eventualmente, percebê-los, apreciá-los e comprar-lhes peças. A relação era benéfica para ambas as partes. António Cachola patrocinava com a compra um trabalho que ainda não tinha o selo de grandes instituições. Por outro lado, o alentejano tinha acesso a obras compradas “em condições simpáticas e beneficiando da generosidade dos artistas”, obras essas que viriam mais tarde a ser valorizadas. E coleccionador e jovens artistas “com elevado potencial, mas muito pouca exposição pública” cresciam juntos. Joana Vasconcelos, a quem António Cachola comprou a primeira peça em 1998, então uma perfeita desconhecida, é um exemplo. E João Onofre, com quem o coleccionador iria ter uma grande relação de cumplicidade, é outro caso.

Mas mais do que apenas os cheques passados, Cachola procurava o risco das suas escolhas, saindo da zona de conforto. “O que eu queria era ser confrontado com o meu julgamento. Mostrar o que comprava e ser avaliado por essas decisões”.Via a sua actividade pós-laboral como uma fonte de adrenalina e não uma actividade burocrática.

Com uma grande determinação, e compreensão da mulher que o acompanha, canaliza “grande parte do rendimento disponível do ordenado” para criar uma colecção que é hoje uma referência para a história recente da arte portuguesa – e que não foi feita por nenhuma instituição oficial – mas em relação à qual não fez nenhuma avaliação monetária. E prefere não saber quanto investiu. Um ponto é certo, o valor em leilão seria hoje muito mais elevado do que a soma dos montantes gastos.

 

Um museu no hospital

Quando em 1999 a colecção deste desconhecido no mundo oficial da arte foi mostrada ao público, pela primeira vez, no Museo Extremeño y Iberoamericano de Arte Contemporáneo – MEIAC, de Badajoz, António Cachola viu o Expresso e o Público dedicarem-lhe páginas elogiosas. “E directores de museus, críticos de arte, historiadores estavam muito surpreendidos com a qualidade de uma colecção feita fora de Lisboa. E eu fiquei muito contente”, recorda.

Era a altura de passar à fase seguinte. Em 2001, sugere à autarquia de Elvas e à directora do Instituto Português de Museus, Raquel Henriques da Silva, a cedência da sua colecção para a constituição de um museu. “Mas sugeri um edifício em particular, um antigo hospital da Misericórdia, no centro de Elvas, que estava abandonado e degradado. A minha única exigência era que fosse aquele edifício”.

António Guterres, então primeiro-ministro, seria um dos signatários do protocolo com o município de Elvas. Considerado um projecto relevante no interior, a reabilitação foi co-financiada pela Comunidade Económica Europeia. Dirigido por João Pinharanda, historiador e crítico de arte (actualmente na Fundação EDP), o MACE abriu em 2007, numa zona central da cidade e atraindo visitantes “quer do país quer da vizinha Espanha”.

A Noiva, de Joana Vasconcelos, feita com tampões O.B e instalada no refeitório do velho hospital forrado com belos azulejos do século XVIII, é uma das peças icónicas do MACE, museu que é agora um ponto de rumagem obrigatório na cidade Património da Humanidade desde 2012.

Em 2010, o MACE subiu à capital com a exposição no Museu Berardo A Culpa Não é Minha, que recebe o nome da escultura de João Pedro Vale. E é um vasto conjunto de três décadas de produção nacional com nomes consagrados como Noé Sendas, José Pedro Croft ,João Louro, Vasco Araújo, Rodrigo Oliveira, João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Em troca, o museu de Elvas recebia peças da Colecção Berardo. A partir daqui foi uma sequência de parcerias, com a Culturgest e com Serralves.

Neste momento, o museu de Elvas já vive em fase pré-comemorativa e com um carregada agenda de exposições individuais que inclui João Louro (que já estava prevista mesmo antes de o artista ser escolhido como representante de Portugal na Bienal de Veneza) e uma parceria com o MUDE (Museu do Design e da Moda).

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