Na linha do fogo grego

Já depois de ter convocado um referendo para o próximo dia 5, no qual os gregos se pronunciarão sobre a política imposta pela troika, Alexis Tsipras recorreu esta semana a uma reviravolta táctica, com a apresentação de propostas onde reeditava basicamente o que o Governo de Atenas pretendia mas fora recusado pelo FMI e as…

Merkel manteve a sua posição de aguardar pelo resultado do referendo – apostando numa vitória do 'sim', tal como o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, militante principal nessa cruzada – enquanto Hollande quis dar uma nova oportunidade à Grécia: esperou que Tsipras desistisse do referendo ou, beneficiando de uma maior abertura dos parceiros europeus, acabasse por trocar o 'não' pelo 'sim' na consulta de domingo. Uma ilusão fora de tempo.

Já se sabia que, apesar da recente cumplicidade entre Merkel e Hollande em vários tabuleiros, Paris procurava desempenhar – até por razões de política interna e de uma muito maior vulnerabilidade económica face a Berlim – um papel de mediador tolerante face às reivindicações gregas. Ora, foi precisamente nisso que Tsipras apostou, de forma a acentuar a confusão no bloco europeu. 

Atenas brinca com o fogo? É certo. Mas chegados ao ponto, aparentemente sem retorno, em que a Grécia e a Europa se encontram – para não falar no cada vez mais esquizofrénico FMI -, o Governo de Tsipras parece não ter já nada a perder. Perdido por cem, perdido por mil. O temor do contágio de um Grexit, a que quase só Passos Coelho e Cavaco fingem estar imunes, vai crescendo numa Europa de candeias às avessas com o seu destino. 

Na verdade, as culpas da Grécia em todo este processo são inúmeras, desde que foi precipitadamente admitida na União Europeia (e, depois, na moeda única) por razões políticas e simbólicas, quando Giscard d'Estaing, então Presidente francês, secundado pelos seus pares europeus, proclamava enfaticamente: «Não se fecha as portas a Platão». 

Não fez as reformas internas que se impunham na administração pública, no sistema fiscal, no clientelismo do Estado, beneficiando ainda das contas viciadas pelo Goldman Sachs e quejandos até que tardiamente – mas previsivelmente – se revelou o colossal buraco em que as suas finanças tinham caído. 

Mas isso aconteceu com a complacência das instâncias europeias e do FMI, que pactuaram com sucessivos Governos conservadores e socialistas nesse exercício de camuflagem.

Quando se expôs enfim a nudez crua da verdade, o terrível castigo europeu e do FMI desabou sobre os gregos: queda de 25% do PIB, 26%de desempregados entre a população activa, uma dívida pública a ultrapassar o inimaginável – e o suportável -, além de uma devastação social à medida da mitologia trágica do país. O absurdo programa de regeneração pela austeridade soou a um dobre a finados pela Grécia. 

Dir-se-á que existem países europeus, nomeadamente do Leste ex-comunista – também integrados à pressa numa União ainda sem fundações propícias a esse desafio -, onde o nível dos salários e das pensões são claramente inferiores à Grécia e que, por isso, se recusam a pagar os custos do descalabro helénico. Mas isso não impede uma constatação óbvia: é este descalabro que ameaça fazer ruir o que ainda resta da construção europeia no plano económico e geopolítico, conforme vem sendo lembrado com insistência nos últimos tempos por Washington. 

Tsipras e Varoufakis podem ter usado e abusado da arrogância e do amadorismo negocial desde que o Syriza ganhou as eleições de Janeiro. Mas o Syriza limitou-se a herdar uma situação de descontrolo e caos com a qual a Europa e o FMI longamente pactuaram, colocando hoje a corda na garganta de um Governo sufragado há menos de meio ano pelos gregos. 

Por mais irritantes e oportunistas que efectivamente sejam os jogos tácticos de Tsipras e Varoufakis – adiando, aliás, o curso das reformas essenciais à sobrevivência grega – o tempo até agora perdido nesta disputa suicidária será pago por todos os europeus e ainda por aqueles que, à escala mundial, se encontram expostos à implosão da Grécia. 

Aconteça o que acontecer até domingo, a disputa entre Hollande e Merkel constitui um novo sinal do desconcerto europeu. E de nada servirá a Portugal continuar a fingir que não é um dos alvos mais imediatos na linha de fogo que incendeia a Grécia – e a Europa.