Jesus ou Judas?

Há duas semanas assisti na TV a um espectáculo que nunca me pareceu possível: Rui Gomes da Silva, vice-presidente do Benfica, atacava impiedosamente o treinador Jorge Jesus.

Para os que estão fora destas coisas, esclareço que Jesus foi durante seis anos treinador do Benfica, sendo hoje o técnico com mais títulos da história do clube. E não só: é o treinador com mais percentagem de vitórias, com mais percentagem de golos marcados por jogo, e que pôs a equipa a jogar um futebol vibrante e ofensivo que já não se via na Luz desde os tempos de Eusébio.

Os detractores de Jorge Jesus ainda procuraram desmerecê-lo dizendo que tinha melhores jogadores do que os seus antecessores. Mas não é verdade. Quando Jesus chegou ao clube tinha praticamente a mesma equipa do ano anterior. Só que, enquanto nesse ano o Benfica alcançara um modesto terceiro lugar, muito longe do primeiro, com Jesus foi logo campeão.

E nos anos seguintes Jorge Jesus teria de fazer face a hemorragias constantes na equipa. Como a cotação do Benfica subiu no plano nacional e internacional, os seus jogadores valorizaram-se e passaram a ser cobiçados, provocando baixas de vulto todos os anos – o que encheu de júbilo o tesoureiro do clube, mas fez com que a equipa tivesse de ser refeita época após época. 

E o certo é que, apesar destas limitações, o Benfica foi sempre campeão ou vice-campeão. Na última época atingiu-se o ponto extremo: o clube teve uma das equipas mais fracas de sempre, enquanto o FC Porto constituiu, segundo o seu presidente, o melhor plantel dos últimos 30 anos. Pois mesmo assim, adaptando uns jogadores a posições novas (como Pizzi ou Samaris), recuperando outros que já estavam na pré-reforma e que ninguém queria (como Júlio César e Jonas) o Benfica venceu o campeonato. Aconteceu aquilo que, à partida, ninguém acreditava que fosse possível.

Por tudo isto, os benfiquistas só podem fazer uma coisa: agradecer a Jorge Jesus. Agradecer os anos de belíssimo futebol e os títulos conquistados. Ele fez no Benfica o que nenhum outro treinador conseguira. Criticar Jesus não é só um sinal de ingratidão: é um sinal de indignidade. 

As pessoas têm de respeitar os outros. Mas quando não os respeitam, ao menos que se respeitem a si próprias. Rui Gomes da Silva mostrou não saber fazer nem uma coisa nem outra. 

Dir-se-á que Jesus, qual Judas Iscariotes, traiu o Benfica ao atravessar a 2.ª Circular para se mudar de armas e bagagens para o rival de Lisboa. Não é verdade. Jorge Jesus gostava de ficar no Benfica; o presidente do Benfica é que não desejava a continuidade de Jorge Jesus. E porquê? Porque o sucesso de Jesus lhe fazia sombra. Os sucessos do Benfica nos últimos seis anos eram vistos como sucessos de Jesus e não de Vieira – e este tinha de provar aos sócios e ao país o contrário. Tinha de provar que os títulos ganhos pelo Benfica são mérito seu. E por isso precisava que Jesus saísse.

Claro que, para Luís Filipe Vieira, o ideal seria que Jesus fosse para o estrangeiro. Por uma razão simples: se ficasse cá dentro, e o seu novo clube fosse campeão, ficaria à vista quem era o verdadeiro artífice das vitórias recentes. Era essa a contraprova que Vieira não queria que fosse feita.

Assim, de braço dado com o empresário Jorge Mendes, o presidente encarnado empenhou-se em levar Jorge Jesus para fora. Deu-lhe argumentos para ir. Se o tivesse conseguido, além de afastar Jesus de Portugal, ficaria com ascendente sobre ele, assumindo o estatuto protector de irmão mais velho: «Agora fazes isto, vais para ali, etc.». E um dia, se as coisas corressem mal na Luz, até poderia trazê-lo de volta

Mas, conhecendo-o bem – como julgo que o conhece -, Luís Filipe Vieira deveria ter previsto que esta estratégia era impossível. 

Talvez pelas suas origens humildes, por ter subido a pulso, Jorge Jesus tem necessidade de ser desejado onde está. Quando sente que não o querem – ou não o desejam como ele gostaria -, vai-se embora. Bate com a porta.

Jorge Jesus é um self made man, um técnico que se fez a si próprio – e que hoje actua num palco em que abundam os técnicos de aviário. Já comparei várias vezes Jesus com o escocês Alex Ferguson. Tal como este, Jesus é uma dourada de mar. Mas também por isso, por ser diferente, tem uma necessidade acrescida de que o respeitem e mostrem que o desejam. A partir do momento em que sentiu que Luís Filipe Vieira não o queria – ou pelo menos não o queria com o fervor que ele achava merecer – resolveu sair. 

Até porque, ao mesmo tempo que isto sucedia, Jorge Jesus viu que do lado de lá da 2.ª Circular estava um presidente e uns adeptos que o desejavam muitíssimo. Que, perante a impossível continuidade do técnico cessante (Marco Silva), encaravam Jesus como uma tábua de salvação, como um Messias. E isso foi decisivo para a mudança.

Jesus não cometeu uma traição: limitou-se a mudar para onde se sentiu querido. Lembro-me de que, há muitos anos, sucedeu o mesmo no Belenenses. Jorge Jesus era o treinador, fizera duas épocas notáveis, mas o clube – por razões que nunca entendi – não fez grande pressão para ele ficar. Ouvi-o dizer na altura: «Eu quero ficar no Belenenses, mas só fico se sentir que me querem mesmo cá». Isso para ele é o mais importante. Acrescente-se que Jesus acabou por sair – e que, no ano seguinte, o Belenenses desceu à 2.ª divisão.

Há dois anos, num debate televisivo na Benfica TV em que também participava Rui Gomes da Silva, eu dizia que Jorge Jesus fazia mais falta ao Benfica do que o Benfica a Jesus. Gomes da Silva contestou, dizendo que ninguém estava «acima do Benfica». A próxima época mostrará quem tinha razão. Veremos o que o Benfica fará com Rui Vitória. E também o que fará Jesus com uma equipa que não é campeã há 13 anos. 

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