Assim, vale a pena fazer revoluções

Foi há mais ou menos vinte anos. Por motivos familiares passei grande parte da noite na sala de espera da urgência do Hospital de São Francisco Xavier.

na cadeira geminada com aquela onde me sentava, uma senhora, na casa dos sessenta, meteu conversa:

– estas urgências estão tão demoradas!… já estou aqui há mais de três horas! também não tenho ninguém à minha espera, mas as cadeiras são tão desconfortáveis!… sabe, o meu centro de saúde não serve para nada, ando com uma dor nas costas há quase um mês decidi que não passava de hoje: arrumei a casa, fui dar um jeito no cabelo e vim para aqui. demore o tempo que demorar, pelo menos fazem-me logo a radiografia, se for preciso.

a conversa foi interrompida pelo burburinho provocado por uma emergência: uma senhora ainda jovem, de ar distante, que não conversava com ninguém, tentou sem aviso saltar por uma janela do corredor lateral das urgências.

quando, em 1988, o governo instituiu as primeiras taxas moderadoras para utilização dos serviços de urgência, eu, lembrando-me daquela noite em são francisco xavier, até percebi.

que pena as pessoas terem quase sempre de aprender a não desbaratar recursos através de estímulos negativos – pensei eu na minha credulidade a roçar a parvoíce.

mas quando, em 2006, o então ministro correia de campos veio defender a criação de novas taxas moderadoras, neste caso para internamentos e cirurgias ambulatórias, eu acordei.

ninguém se interna ou se faz operar no serviço nacional de saúde por decisão própria!

mais tarde, em livro publicado no outono de 2008, o mesmo senhor professor doutor reconhece que as novas taxas moderadoras por si propostas não tinham por objectivo dissuadir a utilização abusiva dos recursos colectivos mas eram já a preparação da opinião pública para a alteração do financiamento do sistema.

viva a transparência! viva a ética republicana!

embora todos os processos tenham a sua história (e a história do desmantelamento do serviço nacional de saúde tenha um longo rol de pais, mães e padrinhos a construí-la), hoje estamos a tocar o quase homicídio por gestão danosa.

ao deixar de subsidiar o transporte de doentes oncológicos (e outros), das zonas mais recônditas do país para os centros urbanos – onde foram concentradas as respostas especializadas (exemplo valpaços –porto) –, este governo está a obrigar os cidadãos a pagar com a vida uma dívida que não fizeram.

é preciso cortar nas gorduras, porque já temos demasiadas crianças obesas.

é preciso cortar gorduras nos sistemas para que possam responder ao que é essencial e deixem cair o acessório.

mas não podemos permitir que todos os que malbarataram o nosso dinheiro venham agora condenar à morte, por falta de tratamento (ou por impossibilidade de chegar até ele, quando ele está à distância de 300 euros), os mais frágeis dos portugueses.

não venham argumentar que precisamos de ser realistas ou alunos bem comportados. outros países tomaram atitudes diferentes perante situações idênticas.

recebi um documento ao qual a nossa comunicação social não deu qualquer ressonância e que começa assim: «graças à revolução social, a islândia irá triplicar o seu crescimento em 2012, porque conseguiu acabar com o desgoverno, e julgou e prendeu os responsáveis pela crise financeira.

os islandeses começaram a redigir uma nova constituição, por eles e para eles, e hoje, graças à mobilização popular, já têm o país mais próspero de um ocidente submetido à tenaz crise da dívida».

assim, vale a pena fazer revoluções.

catalinapestana@gmail.com