Contas à moda de Lisboa

Durante a semana, almoço muitas vezes com colegas de trabalho. Nem sempre são almoços tranquilos, pois frequentemente surgem na conversa problemas profissionais que nos inquietam e que suscitam, por vezes, discussões acaloradas. 

Outras vezes discutimos temas da actualidade, mais frívolos ou mais substanciais, em que as posições também se dividem. Uma regra que impusemos a nós próprios (e que em geral é cumprida) é não se falar de futebol. 

É vulgar as pessoas transfigurarem-se quando falam de futebol. Indivíduos habitualmente calmos tornam-se agressivos. E nós não fugimos completamente à regra.

Poder-se-á estranhar que pessoas  racionais não consigam ficar imunes às paixões clubísticas. Só que o futebol serve para isso mesmo: para libertar o ser irracional que existe em cada um de nós. Para dar vazão às emoções reprimidas.

No fim dos almoços, o total a pagar é dividido pelo número de comensais. Que muitas vezes são três, outras vezes quatro, e excepcionalmente cinco ou mais.

E aí começam as confusões de outro tipo. Não é que não saibamos fazer contas de dividir ou que alguém não queira pagar a sua parte. Nada disso. O problema é que uns pagam em dinheiro, outros em cartão, e outros ainda emprestam moedas aos colegas para facilitar os trocos.

Calculo que os empregados se vejam às aranhas com estas contas. Até porque, na quantia total a pagar, incluímos a gratificação (vulgo gorjeta). Há restaurantes onde isso não é possível, pois só aceitam receber com cartão a quantia constante da factura – devendo a gratificação ser dada à parte. Mas nos restaurantes que frequentamos isso não se passa. 

 

Um dia destes aconteceu uma situação hilariante que justificou esta crónica. Éramos quatro à mesa. No fim da refeição, concluiu-se que cada um tinha a pagar 11 euros (como se vê, frequentamos restaurantes modestos). Eu pus uma nota de 10 euros em cima da mesa, que o empregado (que, por acaso, é o dono do restaurante) recolheu, e fui procurar um euro no porta-moedas. Mas não o tinha. Só tinha um dime, que me ficou de uma viagem aos EUA, e uma moeda de plástico, daquelas que se usam nos carrinhos dos supermercados. 

Pedi então os 10 euros de volta ao empregado/patrão e entreguei-lhe uma nota de 20 euros. Entretanto, dois dos meus colegas já tinham pago, só faltando um. No meio de certa confusão, este pediu-me para pagar por ele. Eu tinha de pagar, portanto, 22 euros – e só tinha dado ao empregado 20 euros. Estendi-lhe, então, a nota de dez que que ele me tinha inicialmente devolvido, e fiquei à espera de receber oito euros de troco. 

 

Até aqui tudo simples. Sucede que um dos colegas que já tinha pago a sua parte pôs dois euros em cima da mesa, para me facilitar a vida, e disse: 

– Podemos ir embora, está tudo certo.

– Alto lá, tenho de receber o troco – retorqui. 

– Não tens nada a receber. Deste uma nota de 20, recebeste 10, depois devolveste os 10, pelo que pagaste 20. E eu pus mais 2 por ti. Está certo!

– Não, não está! – insisti. – Vocês não estão a perceber… 

Entretanto, já discutíamos em voz alta – e a algazarra era grande. Outros clientes olhavam para nós. Apercebi-me do ridículo da situação e sugeri que saíssemos e discutíssemos lá fora.

 

Os meus colegas continuavam a insistir que eu não tinha nada a receber. A questão não era nada importante, mas para mim já se transformara quase numa questão de honra. Com dificuldade, consegui explicar aos três colegas o que se tinha passado. E peço aos leitores atenção para perceberem a explicação:

– Eu dei 10 euros ao senhor, pensando que tinha um euro trocado. Quando vi que não tinha, pedi os 10 euros de volta e entreguei uma nota de 20. Entretanto, o José pediu-me para pagar por ele. Voltei então a entregar ao senhor a nota de 10. No total, tinha entregue 30 euros para pagar 22. Nisto, o António pôs 2 euros na mesa, para me ajudar. Eu tinha, portanto, de receber de volta a nota de 10 euros!

Finalmente eles perceberam. Não haviam reparado que a nota de 10 euros que o empregado/patrão me estendera de início era originalmente minha… 

 

Voltei então a entrar no restaurante, expliquei ao senhor a situação, ele apressou-se a devolver-me os 10 euros, enquanto dizia:

– Olhe, eu nem vi. Confesso que não conferi o dinheiro que me deram.

E eu acredito piamente. Como comecei por dizer, com uns a pagar assim e outros assado, com moedas soltas para facilitar os trocos, os empregados dos restaurantes que frequentamos nem devem perceber bem o que recebem. Simplesmente, confiam em nós. E eu garanto que o podem fazer. Afinal de contas, se algum de nós verificasse que tinha recebido troco a mais, devolveria seguramente o dinheiro. 

Todos, aliás, já vivemos situações dessas. 

Ainda um destes dias voltei atrás para devolver umas moedas a um homem a quem comprei figos à saída da praia. Ele não percebeu logo o que se passava – e ficou a olhar para as moedas com ar desconfiado, antes de as guardar no bolso.

Mas a honestidade não impede que devamos fazer um esforço para sermos mais claros nos pagamentos nos restaurantes, não provocando confusões e não complicando a vida aos empregados. Até porque, à hora tardia a que vamos almoçar – por volta das três da tarde – eles  já devem ter a cabeça em água. 
jas@sol.pt