Vidas sem valor

A PSP abriu recentemente em Lisboa, em colaboração com a Câmara Municipal e os hospitais da cidade, o Espaço Júlia, para atendimento permanente e «apoio multidisciplinar» às vítimas de violência doméstica. 

A Júlia que dá nome ao Espaço foi mais uma mulher assassinada pelo marido. 

Além de «intervenção directa», o referido Espaço propõe-se assumir «competências na promoção de actividades de carácter preventivo e pedagógico na comunidade local». 

Tudo isto é muito bonito – mas a verdade é que, por muito moderno e multidisciplinar que seja o apoio às vítimas e por mais esforços pedagógicos que se façam sobre as «comunidades», muitas mulheres continuam a ser assassinadas por cônjuges ou ex-cônjuges. 

Há dias, em Ermesinde, um homem matou a tiro a ex-mulher e o filho de cinco anos. Antes de matar, ameaçara de morte a mulher e vários outros elementos da família. E a vítima apresentara queixa na Polícia – em vão. Assim não há pedagogia que funcione. 

Centenas e centenas de mulheres aguentam caladas décadas de maus tratos. Por vergonha e por medo. 

Vergonha da sociedade, dos filhos (que muitas vezes assistem aos maus tratos e são também maltratados). Medo de que, se falarem, a situação piore; os violentadores são, aliás, particularmente persuasivos no que se refere a manter as vítimas em silêncio. 

De cada vez que uma mulher que apresentou queixa acaba assassinada, muitas outras deixam obviamente de apresentar queixa. Pensam que, se o fizerem, também elas serão mortas, e provavelmente até os filhos. Como se vê, têm mais do que razão para pensar assim. 

 

As suspeitas de corrupção bastam para que alguém seja preso preventivamente; mas alguém que ameace outrem de morte pode continuar na sua vidinha até que cumpra as ameaças. 

O que a Justiça portuguesa nos diz, através deste modelo de actuação, é que a bolsa vale mais do que a vida – ou, pelo menos, do que certas vidas. Vidas de mulheres anónimas, vidas de crianças. 

Fazem-se campanhas contra a violência doméstica com grande alarido, mas nada se faz de concreto para a estancar. 

As famosas casas de apoio às vítimas não são a resposta: por que razão terão as vítimas de sair de casa, sacrificar as suas vidas e viver escondidas? As verdadeiras  casas de apoio às vítimas seriam as prisões. Uma pessoa que ameaça outra de morte deve ser imediatamente afastada do contacto, não só com a própria vítima mas com toda a sociedade – até porque pode exercer o seu impulso assassino de um modo desviado, matando outra pessoa; há tempos um homem não encontrou a ex-mulher e decidiu matar (e matou) a advogada dela. 

Prisão preventiva e julgamentos céleres: são estes os instrumentos capazes de travar o morticínio em curso. 

Teriam também um efeito pedagógico quer sobre os criminosos quer sobre as vítimas. Eles pensariam duas vezes antes de ameaçar. Elas não esperariam pela ameaça de morte – ou pela própria morte – para denunciarem a violência a que são sujeitas. 

O assassino de Ermesinde acabou por morrer na prisão no mesmo dia em que morreu o filho de cinco anos que ele baleou na cabeça. «Justiça divina!» – escreveu-se nas redes sociais. Mas a verdade é que justiça nenhuma pode ressuscitar a vida perdida dessa criança. E a culpa é da indiferença do sistema judicial português, a que só por ironia se pode chamar Justiça.        

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