As referências estão a desaparecer?

A propósito da figura grotesca da mulher com barba, escrevi há tempos que um dos problemas da nossa civilização é estar a perder as referências.

De facto, a imagem de uma mulher barbuda baralha-nos todas as referências – e a intenção seria mesmo essa: baralhar-nos, confundir-nos. 

E quando falo de ‘referências’ refiro-me a um conjunto de conceitos, balizas e regras de conduta que durante séculos foram comumente aceites e que de repente entraram em crise.

Aquilo que faz o cimento de uma comunidade é um conjunto de princípios e de normas, umas escritas, outras não, que toda a gente aceita naturalmente e sem discussão. 

Até há pouco era consensual, por exemplo, que as pessoas deviam sair à rua lavadas, penteadas e vestidas com roupa limpa e decente. Só os vagabundos não o faziam. Tal não estava escrito em parte nenhuma, mas não passava pela cabeça de ninguém contestar esta evidência. Ora bem: hoje as calças compram-se manchadas e rotas, as camisas usam-se com a fralda de fora, certos penteados tentam imitar os cabelos despenteados. Há uma vontade notória de desafiar as regras.

E isto verifica-se nas mais diferente áreas. Relativamente a tudo e mais alguma coisa, as pessoas começaram a questionar o óbvio: «Por que razão não poderei andar roto? Por que terei de andar com a fralda da camisa dentro das calças?», etc. E destas questões sem importância passa-se para um nível superior: «Por que é que dois homens ou duas mulheres não podem casar-se? Por que é que as drogas não hão-de vender-se nas lojas?». 

Dir-se-á que a liberdade é isto mesmo. Cada um poder fazer o que quer. Vestir como quer, consumir o que quer, casar com quem quer. 

Ora, é precisamente aqui que começa a ficar em perigo o tal conjunto de regras comummente aceites sem as quais a vida em sociedade se torna impossível. Quando começamos a questionar tudo, a pôr tudo em causa, a comunidade fica em perigo. Quando as regras que contribuíam para unir as pessoas, para lhes transmitir o sentimento de pertença a um grupo humano, estalam, inicia-se o processo contrário: a desidentificação com o próximo e a desagregação do grupo.

É também por esta razão que me tenho manifestado contra o casamento gay. Até há poucos anos, quando se falava em casamento, pensava-se em união de um homem e de uma mulher – usando-se também, para designar o acto, a expressão ‘constituir família’. Fulano «vai constituir família», dizia-se. Porque a seguir ao casamento vinham naturalmente os filhos, depois os netos, etc. Ora o casamento gay é por natureza estéril. Claro que pode haver adopções, ou então cada um dos membros do ‘casal’ ter os seus filhos. Mas não podem ter filhos em comum. E isto faz toda a diferença.

Eu sei que tudo muda e que nenhuma realidade é estática. Os nossos avós saíam aos domingos à rua de fato e gravata, e as senhoras com os melhores vestidos, e hoje não passa pela cabeça de ninguém – pelo menos nas cidades – vestir-se assim ao fim-de-semana. Muita coisa mudou. Mas durante muitos anos, talvez séculos, as mudanças faziam-se dentro de padrões e referências comuns. Ora o que caracteriza a revolução dos últimos anos é que houve perda de referências. Não se verificou uma evolução de certas regras mas uma contestação geral de todas as regras. Pergunta-se a toda a hora: «Porquê isto? Porquê aquilo? Porquê aqueloutro?». E cada pergunta já supõe uma vontade de querer quebrar os padrões. 

E depois dá-se um fenómeno curioso: esse desejo de ruptura, que a princípio surge como minoritário, rapidamente alastra – em grande parte através das redes sociais – passando a integrar o ‘politicamente correcto’. E, nessa altura, ai de quem disser alguma coisa em contrário, ai de quem discordar, ai de quem se manifestar contra – porque leva logo em cima com um chorrilho de rótulos: bota-de-elástico, old fashion, antiquado, mentalidade medieval, reaccionário, ultramontano, etc. E estas são as expressões mais civilizadas…

Em Nova Iorque, o mayor Rudolph Giuliani conseguiu controlar a criminalidade – que na época era assustadora – adoptando aquilo que designou por ‘tolerância zero’. Argumentava ele que, para combater a grande criminalidade, era preciso começar por combater a pequena. E assim perseguiu sem tréguas os autores de grafitis, os coladores de cartazes ilegais, os pequenos transgressores, os pequenos delinquentes. E teve sucesso. NY é hoje uma cidade segura.

Ora, na nossa sociedade está a passar-se o contrário: tolerância máxima. Tal como no slogan de Maio de 68: «É proibido proibir». E assim se está a construir uma sociedade em que já nada é consensual, em que tudo se contesta, em que tudo se permite, em que nenhuma regra é aceite sem polémica. 

As pessoas têm medo da palavra ‘autoridade’. Acham que a democracia é incompatível com a autoridade. Pois é exactamente o contrário: se uma democracia permite tudo, se a autoridade desparece, a democracia fica em perigo. Se o Estado não combate os pequenos desafios às regras estabelecidas, perde o controlo dos acontecimentos. 

Eu digo aos meus alunos: «Nunca se viu uma democracia evoluir para uma ditadura por excesso de autoridade, mas já se viram muitas democracias cair por falta de autoridade».

Alguns gurus, alguns líderes de opinião que falam na TV, têm medo de falar claro por receio de se tornarem impopulares. Não condenam nada com vigor, aprovam tudo, por mais absurdo que pareça, em nome da ‘tolerância’. Tudo é aceitável: mulheres com barba, legalização das drogas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, músicas com apelos à violência, insultos ao Presidente da República, eu sei lá! 

Pensando que estão a defender a democracia, estão a matá-la – porque tudo isto é corrosivo e desagregador. A democracia exige que se trace uma linha clara entre o que é permitido e o que é proibido, linha essa que não pode ser transposta sem penalização. Mas nas nossas sociedades essa linha está a ser transposta impunemente todos os dias, perante a complacência dos que julgam estar a defendê-la. 

O conjunto de regras não escritas que nos aproximava do nosso semelhante e construía o sentimento de pertença a uma comunidade tem vindo a perder-se. Cada vez estamos mais longe uns dos outros. Isto não pode acabar bem. 

jas@sol.pt