Abusos de confiança

Para além da polémica que suscitou um cartaz socialista de estilo grosseiramente kitsch nesta época de pré-campanha, a palavra “confiança” não constitui uma novidade na propaganda eleitoral. Pelo contrário, apareceu sucessivamente em cartazes de António Guterres (“Um voto de confiança”), Durão Barroso (“Mudar com confiança”) e José Sócrates (“Força e confiança”). Há, pois, confiança a…

Edson Athayde, responsável pela imagem de Guterres, voltou a ser chamado para promover António Costa. É um talentoso criativo brasileiro e duvido que se tenha tornado devoto de um daqueles credos evangelistas com grande irradiação no seu país natal (e já presentes, também, entre nós), onde aparentemente se inspirou para conceber o referido cartaz do PS. Terá Edson pensado que Portugal, caído nas profundezas da descrença, só poderia ser mobilizado pela fé de um “tempo de confiança” com laivos místicos new age?

Mas não é de uma questão religiosa que se trata. É de uma simples questão de bom gosto e bom senso. Que um partido dito socialista embarque numa onda de serôdio imaginário evangélico, onde às trevas do passado se sucedem as luzes da redenção, constitui uma ofensa à inteligência e sensibilidade dos eleitores portugueses.

Em todo o caso, o resultado foi o que se conhece: a máquina de campanha do PS, de início acrítica e condescendente, recuou em toda a linha, sob pressão das caricaturas do cartaz nas redes sociais e das reacções desagradadas no interior do partido.

Quando se especulava sobre a queda em desgraça do mago Edson, outra campanha do PS – de autoria oficialmente ‘secreta’ mas atribuída a um publicitário do Porto e conhecido colaborador, generosamente remunerado, da Câmara de Lisboa – assaltava os outdoors, com as caras e supostos depoimentos de cidadãos atingidos pelo desemprego e a precariedade. Como um azar nunca vem só, desta vez o abuso de confiança foi mesmo literal e não apenas o da utilização recorrente da palavra em cartazes eleitorais.

Os retratados na campanha, funcionários da Junta socialista de Arroios, teriam sido apanhados de surpresa quando viram as suas caras acompanhadas por frases que lhes eram falsamente atribuídas. Pelo menos, foi isso que se percebeu depois do testemunho de uma retratada ao site de direita Observador (que, claro, lhe chamou um figo).

O uso de figurantes sem a sua autorização prévia – e escrita – para os fins pretendidos revelou não apenas um amadorismo confrangedor em que todos os responsáveis directos lavaram as mãos com o pedido de desculpas públicas do partido. Representa também um abuso de confiança eticamente condenável.

Obviamente, teriam de rolar cabeças. Ou, pelo menos, uma: a do director da campanha eleitoral do PS, Ascenso Simões, que assumiu sozinho as culpas dos desaires propagandísticos quando estes são fruto de uma leviandade mais geral, ou seja, da forma como é preparada, conduzida e discutida a estratégia eleitoral de um partido, num estilo ‘desenrasca-te se puderes’. 

Simões foi substituído por um dos próximos de António Costa, o vereador da Câmara de Lisboa Duarte Cordeiro. E os cartazes dos desempregados deram lugar a um novo cartaz, sóbrio e convencional de António Costa como garante do “Tempo de Confiança”, onde o resgatado Edson Athayde já não arrisca em fantasias de inspiração evangélica.

“O assunto está encerrado”, proclamou a assessora de imprensa de António Costa. Não está, não. É que este assunto é altamente sintomático da falta de profissionalismo com que a comunicação política é tratada em Portugal – e não só pelo PS, como se viu com o recurso a bancos de imagens estrangeiros para arranjar figurantes dos cartazes da coligação.

Numa campanha eleitoral, lançar mensagens mobilizadoras – e diferenciadoras das alternativas políticas – exige equipas com ideias que possam interagir numa discussão criativa. Não é trabalho que dependa de um instinto solitário ou de improvisos ocasionais.

Evidentemente, há sempre a desculpa da falta de dinheiro, da qual o PS, por exemplo, se tem queixado. Mas essa desculpa leva a outra questão: ao défice de recrutamento, motivação e mobilização de talentos disponíveis para emprestar força e chama a uma mudança política. Não se pode simplesmente abusar da confiança.

P. S. – Depois de apostar no programa dos economistas, o PS não tem sido capaz de descodificar o chamado economês, traduzindo-o em linguagem corrente. Basta ler a entrevista que Mário Centeno concedeu ao Público de 5 de Agosto para se perceber como esse discurso sofre de uma aridez quase ilegível.