‘É preciso unir o país contra o sal e o açúcar’

Vê-lo na televisão é normalmente mau sinal. Como director-geral da Saúde dá a cara quando há crise. E tem que manter a calma nos piores cenários possíveis. O nosso encontro também não arranca bem. Começamos por destruir o nome da secção. Em vez do pôr-do-sol, a conversa tem que ser de manhã. Confundimos as chávenas…

‘É preciso unir o país contra o sal e o açúcar’

Ok. Está um dia bonito, a esplanada no Jardim Amália Rodrigues é maravilhosa a todas as horas e o repuxo no largo compõe o cenário. É a altura para se ser optimista. Desbloqueador de conversa, o que anda a ler?: “Estou a reler Depoimento, de Marcelo Caetano, editado há 40 anos. Agora posso lê-lo sem a emoção dos acontecimentos da altura. E faz-me pensar como foi possível alguém dirigir durante cinco anos um país de forma tão retrógrada”. Mas não vamos por aí. “Os que me conhecem sabem que sempre fui um democrata”, remata. Mais tarde dirá que não liga a emblemas – nem de direita nem de esquerda – e sendo do Benfica tem imensos amigos do Sporting, como o renhido lagarto Eduardo Barroso. “Um óptimo treino para o meu fair play”, brinca.

No domingo fez 10 anos que assumiu pela primeira vez o cargo de director-geral de Saúde, após ser sub-director durante cinco anos. Será o homem que na nossa história mais tempo esteve nesta posição crucial. Viu ministros e primeiros-ministros entrarem e saírem, de esquerda e de direita. Quando tomou posse pela primeira vez, António Guterres era o chefe de Governo. Depois houve Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates e Passos Coelho. “Em nenhum desses governos senti falta de apoio quando foi preciso preparar o país para o confronto com problemas que se avizinhavam”. E quanto a todos os ministros da Saúde diz, defraudando as expectativas de ‘ver sangue’: “Acredite, é a pura verdade. Foi sempre muito fácil, tenho apreço e gostei de trabalhar com todos e de alguns fiquei amigo pessoal”. A lista é variada: Maria de Belém, Correia de Campos, Luís Filipe Pereira, Ana Jorge e Paulo Macedo. É um cargo técnico, mas não puramente: “Deve ser desempenhado por especialistas seniores que tenham compreensão pela defesa do interesse público”.

‘Grace under fire’, como Hemingway

Francisco George mora na Rua Castilho, muito perto do nosso ponto de encontro, e chegou pontualíssimo. O panamá de palhinha (de aspecto autêntico) que lhe cobre a cabeça e as barbas brancas dão-lhe um ar de escritor. Talvez Hemingway. Ao longo da conversa lembro-me da definição que o autor de 'Por Quem os Sinos Dobram' deu de coragem: ‘Grace under fire’. É preciso muita compostura para aguentar as duas vezes em que a saúde pública esteve debaixo de fogo e mesmo assim continuar um cavalheiro. O surto de Gripe A, em 2006, lançou o alarme na população. No final do ano passado, a legionella em Vila Franca de Xira matou 12 pessoas. “Foi o segundo maior surto de doença do legionário em todo o mundo e foi muito difícil, mas conseguimos controlar com rapidez e com uma taxa de letalidade baixa”.

Mas não foi este o momento mais angustiante da sua carreira. Em 2003, foi avaliada a hipótese de encerrar a Quinta do Lago, a 30 de Julho, quando foi diagnosticado a dois turistas irlandeses uma encefalite pelo vírus West Nile.

Os surtos e as epidemias são aterradores, mas o que verdadeiramente preocupa Francisco George está na nossa mesa. Agarra nos três inocentes pacotinhos de açúcar pousados no tabuleiro e brande-os no ar. “É preciso unirmos o país na luta contra o sal e o açúcar!”. Os grandes desafios de saúde? A ineficácia crescente dos antibióticos, a explosão das doenças mentais e o aumento das doenças crónicas, devido a maus hábitos alimentares e ao tabagismo. E falta as pessoas perceberem isto. Quando fizer 70 anos (em 2017) e deixar a DGS sente que a sua missão será continuar a comunicar isto com o grande conhecimento que acumulou.  Dirigir a Organização Mundial de Saúde, onde já esteve em várias missões internacionais durante 11 anos, não é um objectivo. Nem ser ministro da Saúde, garante.

Confirma a amizade com um confesso hipocondríaco: “O Marcelo Rebelo de Sousa telefona-me às tantas da manhã a saber se estou bem”, mas não desarma sobre quem vai apoiar nas eleições presidenciais. “Sou amigo de ex-Presidentes e de candidatos a Presidentes”, ri, enigmático. Mário Soares é um deles e é amigo há 50 anos dos irmãos Jorge e Daniel Sampaio. Mas confessa, se alguém o influenciou a ser o que é hoje foram dois pais de figuras muito influentes. O médico Arnaldo Sampaio (antecessor na DGS e de quem se considera discípulo) e, em termos de pensamento, Avelino Cunhal, professor de Filosofia no Colégio Valsassina. “Estava com ele no dia em que o filho fugiu de Peniche”.

O sol vai alto, é o último dia de férias de Francisco George e explica que vai atravessar a rua em direcção ao Corte Inglès para cumprir o hábito de uma vez por semana ir ao cinema. Filmes preferidos, responde Clint Eastwood. Já viu o Pátio das Cantigas? “Ah, esse não. Fico-me pela versão original”. Aliás já tinha confirmado que o arquitecto Frederico George, autor do Planetário, é da família, um irmão do pai, e agora clarifica: “Esse meu tio fez os cenários do Pátio das Cantigas original”. E refere que a mulher, arquitecta, era discípula de Frederico George. No surto de Gripe A, em 2006, o director-geral de Saúde enfrentou as câmaras de televisão com uma dignidade que iludia a tragédia pessoal. Em Março, a mulher e uma filha tinham perdido a vida num acidente de automóvel. Como se ultrapassa isso? “Não se ultrapassa. Não controlamos os nosso sonhos. Está sempre presente”. Mas segue-se em frente. ‘Grace under fire’ volta a fazer sentido.

telma.miguel@sol.pt

Esplanada  Linha d’Água

Bebidas

Um café e uma água para as jornalistas e um garoto escuro para Francisco George

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