Praga

Começou por ser um ruído ocasional, sobretudo à noite, mais notado quando o mundo em redor se penitencia envergonhado no silêncio.

atribuí-o a um qualquer som da floresta, resultado de viver perto do campo, vizinho de uma mata. contudo, passadas uma ou duas semanas, não havia como negar que o barulho se tornara regular – e ia num crescendo ameaçador. já não havia dúvidas, a origem estava no interior da casa e o gato haruki bem se afadigava na busca pelo intruso. admiti que fosse uma osga, mas não lhes conheço burburinho; talvez uma gata com o cio, quiçá uma coruja ferida numa pata. mas não, finalmente fez-se luz. ou melhor, sombra. quando abri a porta da arrecadação, lá estava ele. agachado no cimo de uma estante, cacarejante, imparável no seu palrar meio irritante meio irado, um animal bem mais perigoso (e chato) do que os mais conhecidos irracionais. um comentador televisivo. e agora, como me livro desta praga?

desconheço até hoje como cá veio parar. suponho que se tenha perdido numa das suas rotas migratórias. os pássaros voam para sul, os comentadores correm para as luzes das câmaras. deve haver um estúdio aqui nas imediações e ainda ninguém deu pela sua falta. não admira, há tantos.

começou por chagar-me a paciência com as declarações de cavaco silva sobre a sua reforma e rendimentos, quis até invadir-me o computador para assinar uma petição online que exige o afastamento do pr. daí passou para considerações sobre o novo líder da cgtp e como a instituição está refém dos anacrónicos desígnios comunistas. num golpe de rins felino, tratou de abordar a temática da solidão na 3.ª idade e o esquecimento a que são votados pela pólis, até na morte. vê todos os debates parlamentares, obriga-me a comprar jornais que não quero ler, acha que vamos sair do euro hoje, que o próprio vai acabar amanhã, fala de manhã sobre o discurso do estado da nação de obama, à hora de almoço sobre as colunas de pacheco pereira e vasco pulido valente, à tarde sobre os processos de duarte lima, à noite sobre as consequências da primavera árabe. nas insónias, fala de si.

é mais instável que o clima açoriano. parece um esquizofrénico de múltipla personalidade. ora está triste, ora está chocado, transita do indignado para o estupefacto, admite-se ironicamente perplexo, varia entre o furioso e o preocupado, apenas sorri quando alguém poderoso lhe dá razão em algo que, salienta/reitera/jura a pés juntos, vem ‘prevendo’ desde há muito. tem bordões: ‘há muito se adivinhava’, ‘eu avisei’, ‘escrevi sobre isto em 1900 e troca o passo’, ‘como se calculava’, ‘mais do mesmo’, ‘mera solução de compromisso’, ‘faltou coragem’, ‘portugal tem de…’. curiosamente, parece ter memória de peixe. quando lhe pergunto hoje sobre o que disse ontem em relação aos bancos, já não se recorda. confunde bpn com ren, jura que não é maçon. sempre que faz isto, o haruki ataca-lhe os sapatos.

tenho uma praga em casa e as páginas amarelas nada referem sobre a desparasitação adequada. o maior receio, neste momento, é de que atraia companhia. virá o cio? ainda não consegui perceber se foi capado, embora pareça até ao momento evidente que o sexo está distante do topo na sua lista de prioridades. valha-nos isso. mas pelo que venho pesquisando, este tipo de animal costuma deslocar-se em manada. no mínimo, não dispensa a companhia de um mesmo espécime, com o qual parece praticar um ritual de acasalamento de avanços e recuos, um diz ‘sim’ o outro ‘não’, jamais consumado (embora seja possível assistir hoje em dia a veículos de comentário onde todos os intervenientes estão de acordo no essencial, um bizarro desenlace hermafrodita).

já faz pouco mais de um mês que habita indevidamente a minha casa, cirandando entre divisões com bem mais opiniões assertivas e certezas absolutas do que os metros quadrados disponíveis. embora acabe por passar mais tempo na casa de banho – único sítio onde guarda silêncio, enquanto ajeita o nó da gravata e se admira ao espelho.

nos últimos dias (desde 31, para ser mais preciso), desatou num queixume. argumenta, imagine-se, que ainda não lhe paguei. diz que está ‘habituado’ a avenças fixas, e garante que – apesar dos tempos – generosas. ameaça-me com um risco de contágio e propagação. mete-me medo, confesso. vejo-os a disseminarem-se por todo o lado, mercê sobretudo de haver tanto tempo de grelha para encher e os formatos enfermos… perdão, enformados de ‘cabeças falantes’ terem orçamentos fáceis de cumprir (uma mesa, uns microfones e câmaras, um moderador, uns quantos espécimes destes e já está). agora durmo com um olho aberto e outro fechado.

esta manhã – e como optei por ignorá-lo – vi-o a tentar convencer o gato de que, apesar de não lavar, arrumar, produzir ou contribuir para o pib de qualquer forma minimamente perceptível, as suas opiniões são fundamentais para o andamento condigno da vida em sociedade. o haruki aguardou pacientemente, de olhar, dir-se-ia, vazio. depois atacou-lhe uma carótida.

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