Ah, o ciúme…

Nenhum sentimento tem as costas tão aladas como o ciúme: as asas fuliginosas deste anjo negro justificam qualquer ignomínia. Há dias, o Correio da Manhã trazia o seguinte título: Polícia ciumento esfaqueia ex-namorada. Como quem diz: o polícia, coitado, até era muito boa pessoa; o malandro do ciúme, esse demónio dos apaixonados, é que o…

Inúmeros provérbios populares glorificam o amor enquanto fábrica de sofrimento: “Quem bem te amar faz-te chorar”; “A chaga do amor, quem a faz a sara”, etc. Inúmeras são também as canções sobre as delícias do amor louco; no cinema e na literatura, os exemplos são mais do que muitos, e canónicos. O Werther de Goethe levou centenas de jovens ao suicídio; os infelizes amores dos shakesperianos Romeu e Julieta levam ainda hoje a equívocos rotundos e fatais. É uma vergonha a ausência de Camilo Castelo Branco nos programas escolares, mas também é verdade que o seu Amor de Perdição (um dos mais fracos romances da obra deste  génio torrencial) só servia para fundir os fusíveis das cabeças hiperelectrifi- cadas dos adolescentes.

A paixão de Simão por Teresa, como a de Romeu por Julieta, é absurda: ambos estão fartos da vida, levantam os olhos do chão, encontram uma incauta menina e dizem de si para si: pronto, aqui está uma razão para viver. Não as conhecem, nunca falaram com elas, não sabem o que pensam sobre coisa alguma (até porque, convenientemente, elas não pensam). A oposição faz o resto: a massa daquela paixão é o facto de ser proibida pelas forças do mundo cruel.

A ideia de que o Grande Amor é o interdito continua a fascinar os espíritos nesta era de suposta permissividade, criando muita infelicidade desnecessária.

O amor vivido, real, quotidiano, é considerado um subproduto – as vedetas casam quatro e cinco vezes, em festejos extravagantes em praias tropicais, até que se divorciam, fartas dos intervalos de rame-rame, para de novo entrarem na espiral do Grande Amor, com o seu fogo-de-artifício publicitário. A festa contínua é a grande droga deste milénio.

Os cientistas põem-se a analisar as hormonas da atracção e decidem que a paixão dura, vá lá, dois anos, e que a partir daí só resta a amizade – ou, com sorte e muita ginástica kamasútrica, uns lampejos ocasionais.

Os pobres casais que continuam a desejar-se ao fim de décadas de vida partilhada começam a sentir-se uns analfabetos sentimentais, uns simplórios, uns seres hormonalmente disfuncionais, embaraçosamente rotineiros e fiéis. Essa pressão socio- -científica estraga mais casamentos do que se pensa. A modernidade é pouco amiga da felicidade alheia; onde falham as previsões laboratoriais, funciona a inveja comunitária, que tudo domina.

Quem ama não esfaqueia; o amor não leva ao crime: a sua matéria-prima é a partilha, não o ódio. Em Amor de Perdição, só uma pessoa ama: Mariana, que conhece bem Simão.

Este amor a fundo perdido é também uma perversão do amor-próprio, mas pelo menos não mata ninguém. Quem difama, espanca ou mata alguém que afirma ter amado, na verdade nunca amou. Nem sequer a si mesmo – mas um assassino é um assassino. Não há compaixão que sobre nem fantasmas de posse que o atenuem.  

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