Somos os primeiros

Num parque de estacionamento, os lugares mais à porta do edifício são sempre para pessoas com deficiência, idosos, grávidas ou portadores de crianças de colo. De alguma forma conseguimos reconhecer que é preciso sublinhar a acessibilidade a estas pessoas, que têm a tarefa de viver em sociedade um bocado mais dificultada.

Quando estive grávida só me apercebi que poderia usufruir destes lugares já mais para o final da gravidez, porque um dia, depois de dar duas voltas a um parque, um funcionário me chamou à atenção da minha própria barriga. Porque gravidez não é doença.

Durante os dois meses finais da gravidez, em alguns parques de estacionamento e filas, decidi exercer os meus direitos enquanto cidadã, e este texto hoje é sobre esse princípio português do ‘chega pra lá que eu vi primeiro’, independentemente de tudo o que está para além do reino que é cada indivíduo.

Só então no dia em que o funcionário do parque de estacionamento me disse que, estando eu já muito grávida, tinha lugar para estacionar num dia particularmente movimentado é que me apercebi que não era crime nenhum gozar dos meus direitos.

Passados poucos dias, no parque de estacionamento do Aeroporto da Portela, estando parada à espera de lugar para estacionar nos lugares destinados a deficientes, idosos, grávidas e portadores de crianças de colo, um senhor passou de passinho ligeiro, com a esposa muito ‘empiricoitada’ e bamboleante e perguntou para dentro do meu carro se precisava de alguma coisa. Empurravam um carrinho cheio de malas. Respondi que estava à espera de lugar. O senhor franziu a testa e perguntou porquê. Respondi que porque estava grávida de oito meses. E ele respondeu que não se notava. Sorri. E de repente começou aos berros, que só neste país, miúdas com esta idade, grávidas e a querer estacionar à porta, onde é que já se tinha visto, que você devia ter vergonha. E berrou que quem é que lhe diz a si que não tenho uma perna postiça? E sorri novamente. E o segurança veio.

Três dias antes do final da gravidez, ao recolher umas análises, tirei uma senha ‘normal’ e tentei sentar-me à espera. Ninguém me cedeu lugar. A senhora da recepção, que já me conhecia do tempo da gravidez, chamou-me para me entregar as análises, para não ter de estar à espera. A sala insurgiu-se. Uma rapariga nova, não precisa, deve ser filha de alguém, é, é, os conhecimentos, é assim mesmo, quem não tem padrinhos more mouro, e por aí adiante. Fiz sinal à senhora que esperaria pela minha vez e ela levantou-se, deu dois berros na sala e disse assim: escusam de estar aí a comentar, que eu sei que aqui é tudo idoso, mas a menina está grávida. Eu tinha um casaco de Inverno, daí que não se visse muito a barriga, e do burburinho aguerrido passou-se a um silêncio sepulcral.

Estes episódios sucederam sempre na presença de crianças, essas esponjas que absorvem tudo o que se lhes mostra. E se as crianças são o futuro, para quê demonstrar-lhes o pior que a Humanidade tem? Por um lugar à porta? Para passar à frente de toda a gente?

Há um par de dias, a caminho da praia, já com a minha criança de colo, o meu marido estacionou num lugar ‘normal’. No passeio a caminho da praia, o trânsito foi cortado para impedir as pessoas de estacionar em cima do areal e causar engarrafamentos. Estavam lá postas umas grades. Havia um espaço de um metro e meio até à grade e um indivíduo queria estacionar. Ordenou ao filho adolescente que saísse do carro e afastasse a grade o suficiente para ele estacionar, mesmo ali, em cima da praia. Não era deficiente, nem idoso, não estava grávido e a criança já não era de colo. Estava apenas a querer ser o primeiro da fila. E a ensinar ao filho como é que se faz para se ser o primeiro.

E assim se sabe que lição de cidadania já está comprometida para a próxima geração, pelo menos.

joanabarrios.com