Para quem os sinos não tocaram

 Francisco (nome fictício) estava num relacionamento há dois anos com Joana quando decidiu pedi-la em casamento. Na época, tinha 25 anos e ela 19. A relação parecia ter pernas para andar e o desejo de casarem e começarem uma família era mútuo. “Ao fim de um ano e pouco de namoro, começámos a falar nisto…

Marcaram a data do casamento e começaram com os preparativos para a cerimónia. Foi nessa altura que Joana começou a ter atitudes que o ex-noivo descreve como “estranhas”. “Estávamos a jantar em casa dos meus pais, quando ela disse que estava cansada e queria ir para casa dormir. Ela tinha tirado a carta há pouco tempo, então emprestei-lhe o meu carro. Passado algum tempo, colegas meus contaram-me que a tinham visto na noite com outras pessoas”.

As desconfianças aumentaram, o relacionamento foi-se deteriorando, mas houve uma situação que levou Francisco a pôr um ponto final. “Descobri que tanto ela como os pais andavam a extorquir-me dinheiro do crédito à habitação”, acrescentando que foi lesado em mais de três mil euros. Tudo isto aconteceu a duas semanas da data do casamento, já com tudo marcado e pago, desde restaurante reservado, convites enviados e vestido de noiva assinalado. “Ela chegou a dizer-me na cara que até poderia ir com o casamento para a frente, mas que passado pouco tempo iria pedir o divórcio”. Mais tarde, ainda descobriu que Joana esteve envolvida com uma outra pessoa.

Foi Francisco quem tratou dos cancelamentos. “Ela nem se preocupou em tratar de nada. Tive que ser eu a dar a cara no restaurante. O dono, que é meu conhecido, foi extremamente amável, compreendeu a situação e não me levou dinheiro nenhum”. Joana ainda pediu dinheiro para pagar o vestido de noiva e Francisco chegou mesmo a ser ameaçado pela família dela. “Dei-lhe dinheiro e depois soube que nunca foi à loja pagá-lo”.

Apesar de já na altura ter sentido que o cancelamento do casamento “foi o melhor que podia ter acontecido”, explica que foi apanhado totalmente desprevenido. Não esconde a tristeza que sentiu quando descobriu ‘o esquema’ e diz que ainda demorou algum tempo a ‘recuperar’. “A nível emocional, fiquei extremamente afectado. Financeiramente, tive muitos problemas porque ela desviou-me bastante dinheiro”.

Olhar com olhos de ver

Ainda assim, Francisco é o primeiro a confessar que ignorou uma série de sinais, isto é, estava demasiado apaixonado para se aperceber do estado do relacionamento e daquilo que se estava a passar. “Muitas vezes, as pessoas são vítimas de não terem assumido as dificuldades e de não terem tomado consciência do estado da sua relação. Acabam por ir para o casamento sem terem resolvido coisas fundamentais do relacionamento”, explica a psicóloga Maria Manuela Porto.

A fundadora da POESIS (Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica de Casal e Família) realça que as desistências em cima da hora do casamento é uma situação relativamente comum nos últimos tempos, especialmente porque os casais estão em negação ou vão adiando assumirem os conflitos, esperando que estes se resolvam como que por milagre depois do ‘sim’. “O casamento é marcado, como nas histórias de fadas, como se fosse resolver tudo e levam as coisas até à última. Há relações que vão até à marcação do banquete e à compra do vestido em quezílias enormes. E, por vezes, saudavelmente uma das partes desiste em cima da hora”, acrescenta a especialista.

Em muitos outros momentos, as pessoas têm receios de compromissos que não conseguem assumir perante os companheiros e vão deixando arrastar as situações, seja por falta de coragem, seja porque gostam da outra pessoa e querem vê-la feliz. O receio de perder a sua identidade e de ser controlado/a pelo companheiro acaba por se ir acumulando até que a pessoa não aguenta mais e ‘foge’. “Quanto mais se chega perto do objectivo, mais insuportável se torna”, acrescenta. A outra parte do casal, que foi mais insistente quanto ao casamento, por vezes manipulando o outro, acaba por forçar uma situação insustentável.

Esta situação “extrema”, como caracteriza Maria Manuel Porto, faz duas vítimas: a pessoa que é deixada e aquela que abandona. “A pessoa que foi deixada tem um sentimento de perda e de abandono muito grande”, adianta a psicóloga, acrescentando que estas pessoas consideram-se as únicas vítimas da história, uma vez que atribuem as culpas exclusivamente ao outro, sem olharem para os problemas relacionais. “O que está em causa é a relação, não é ‘um’ + ‘um’. São três elementos: eu, tu e nós. E o nós não está resolvido”. Mas o sofrimento daquele que abandona não pode ser descartado, uma vez que se vê como o ‘agressor’ da história e é assolado por um enorme sentimento de culpa.

A desistência de um casamento é particularmente difícil de gerir pelo seu lado público e social, isto é, são problemas entre casais que acabam por ficar expostos e com os quais é difícil lidar. “É uma experiência limite que implica coisas não só íntimas como sociais e familiares, acabando por não ser só vivido apenas entre os dois”, diz a especialista.

Maria Manuel Porto destaca que há pessoas que conseguem ultrapassar esta experiência dolorosa, mas há outras que não. Tudo depende da maneira como encarem a situação. “As pessoas podem pôr-se numa posição de vítima o resto da vida ou podem tentar perceber o que passou”.

Francisco é um bom exemplo de como é possível colocar uma pedra sobre o assunto e seguir com o seu caminho. Oito anos depois, está casado e já tem uma filha. “Com o passar do tempo, as coisas foram sarando e dei o rumo mais assertivo que podia ter dado à minha vida. Por vezes, fecha-se uma porta para se abrir uma grande janela”, afirma Francisco.

Família. Bem-me-quer, mal-me-quer?

Algo que também não pode ser ignorado é o poder que as famílias têm nos casamentos, especialmente antes do enlace. Em algumas situações, a pressão feita pelos familiares dos noivos pode levar a um rebentar da bolha, especialmente se não gostam da pessoa com quem o seu filho/filha está prestes a casar. As razões variam. Há desde questões económicas a guerras entre famílias, e até discussões sobre estatutos socais. “Pode acontecer que haja uma pressão grande por parte da família, chegando mesmo, por vezes, a apresentarem pessoas alternativas”, explica Maria Manuela Porto.

Estas pressões familiares, que são caracterizadas como causas externas para o fim de compromisso, acabam por ter ecos internos nas pessoas que já estão inseguras. “Quando isto acontece, é também porque a relação não era muito forte, uma vez que quando existe um vínculo forte, as pessoas sabem perfeitamente se gostam ou não da outra”, acrescenta. A especialista, todavia, realça a importância de as pessoas sararem os seus conflitos com os progenitores de modo a poderem escolher o companheiro que querem. “Se uma pessoa não é capaz de gerir a pressão familiar, e se desiste do casamento por isso, foi porque não se conseguiu autonomizar”.

O historial familiar e as ideias que foram passando de geração em geração também podem criar alguns receios aos noivos. “Inconscientemente, há uma amargura e uma desconfiança que se foi passando na família”, conclui Maria Manuela Porto. Isto é, se ao longo das várias gerações na família da noiva, as mulheres foram maltratadas pelos maridos, não é de estranhar que tenha um receio em comprometer-se e em ligar-se a um companheiro. No caso dos homens, se o pai ou avô e até mesmo bisavô tiveram mulheres tiranas e que os enganaram, compreende-se que tenham medo que lhe aconteça o mesmo.

Ainda assim, estas desistências são encaradas por algumas famílias como um tabu. Que o diga Teresa (nome fictício). O casamento do primo Tiago foi cancelado na véspera e desde então que ninguém fala do que aconteceu. A jovem ainda se lembra quando a mãe recebeu o telefonema da cunhada a dar-lhe a notícia, há cerca de 15 anos, numa sexta-feira de chuva. “A minha tia, irmã da mãe do Tiago, ligou para a minha mãe a dizer que já não ia haver casamento porque a noiva tinha desistido”.

Apesar de não ter sido assumida nenhuma causa, a jovem diz que a pressão feita pela mãe do noivo terá estado na origem da mudança de ideia à última hora. “Inicialmente, a ideia dos noivos era apenas irem morar juntos, mas a minha tia é extremamente religiosa e acho que os pressionoupara se casarem”. Teresa acrescenta ainda que na família dizia-se que a noiva nunca tinha tido uma relação fácil com a sogra e que toda a festa foi idealizada pela mãe de Tiago, uma vez que a noiva preferia uma cerimónia mais discreta.

Na altura, já tudo estava pago pelos pais dos noivos e foi feita uma distribuição pela comida que iria ser servida no dia do casamento. “Ainda me lembro que veio lagosta cá para casa”, recorda entre risos. O noivo, com o choque da situação, “desapareceu”. Teresa afirma que o primo foi viajar nos dias a seguir ao incidente, provavelmente aproveitando a viagem planeada como lua-de-mel que também já estava paga. A noiva, por sua vez, foi trabalhar para fora do país.

Desde então que não se falou mais do assunto. Nos encontros familiares, ninguém menciona o que aconteceu, limitando-se às perguntas comuns entre familiares que se vêem poucas vezes ao ano.

Quem costuma assistir a estes conflitos entre pais e noivos são os funcionários das lojas de noivas. A Tabu contactou diversas lojas e os funcionários falam em pressões, e em alguns casos até conflitos, a que assistiram por parte dos pais, especialmente mães, em relação às escolhas da noiva.

“As noivas chegam ao ponto de não comprarem o vestido que gostam e optam por aquele que a mãe mais gostou”, explica Hugo Teles, da loja Figurino da Noiva, acrescentando que nestas situações, os funcionários tentam ajudar a noiva, tentando fazer com que escolha aquilo que mais lhe agrada.

No que toca a desistências, o funcionário afirma que recebe entre 10 a 20 cancelamentos de vestidos por ano. Realça, porém que é difícil perceber se todos se devem a casamentos que acabaram por não se realizar ou se simplesmente porque as noivas optaram por outros vestidos, de outras lojas.

Ainda assim, Hugo Teles, com cerca de 20 anos de casa, afirma que existe uma grande pressão relativamente à cerimónia e que os noivos acabam por não conseguir lidar com as discussões provenientes do stress da organização do evento. “Há um nervoso miudinho que é causado pelas expectativas demasiado elevadas em relação ao dia do casamento. Querem que seja tudo tão perfeito que ultrapassam os seus limites”.

Os ‘sinais’ que custam dinheiro

A grande maioria dos vestidos já estão sinalizados quando surgem as desistências, isto é, já pagaram algum dinheiro para ‘reservar’ o fato, sendo que este valor varia consoante o preço do vestido. Muitos tentam reaver o dinheiro, ainda que seja política da loja não ressarcir o consumidor. O funcionário recorda uma situação que o marcou particularmente. “Lembro-me que a única excepção que abrimos foi para uma noiva que veio à loja com a mãe, ambas vestidas de preto, dizer que já não ia haver casamento porque o pai tinha morrido. Depois, descobrimos que era mentira porque um colega viu-as a rirem, assim que saíram do estabelecimento”.

Quem também acaba por sentir estes cancelamentos são as quintas, que as noivas reservam para o evento com vários meses de antecedência. A Tabu falou com pessoas ligadas a estas propriedades que destacam que os cancelamentos de última hora não são uma situação recorrente, ainda que aconteçam pontualmente. Algumas falam em um cancelamento por ano, enquanto que outros recordam apenas episódios esporádicos que foram acontecendo ao longo dos anos.

Uma das pessoas recorda que, no ano passado, recebeu um telefonema a avisar que os noivos tinham cancelado o casamento, cerca de dois meses antes do dia. Nessa altura, o sinal já estava pago. Numa outra quinta, aconteceu uma situação semelhante, sendo que desta vez foi o próprio noivo que entrou em contacto, a notificar que o cerimónia não iria realizar-se porque ia emigrar. O aviso foi feito cerca de um mês antes e o sinal, de cerca de mil euros, já tinha sido pago.

Independentemente de quem assume a desistência, a psicóloga afirma que é uma experiência vivida com muita vergonha pelo casal e realça que esta é uma situação que poderia ter sido evitada, se as pessoas procurassem ajuda para resolver os seus problemas, sobretudo a nível do casal. “As famílias e os casais em Portugal não têm muito esta ideia de que é a relação que tem de ser tratada. Aparecem já com a problemática muito avançada e é importante perceberem por que deixaram as coisas chegarem a este ponto. Há uma falta de informação sobre o meios que há de ajuda e há falta de formação sobre os papéis sociais, sobre o que é ser uma família, um casal, de ser mulher, de ser marido”, conclui Maria Manuela Porto.

rita.porto@sol.pt