Um escritor de se lhe tirar o chapéu

Santiago Posteguillo, em A Vida Secreta dos Livros, conta como devemos ao primeiro diretor da biblioteca de Alexandria, Zenódoto de Éfeso, a arrumação por ordem alfabética. Requisitado por Ptolomeu para gerir e organizar os milhares de rolos que ali se acumulavam, Zenódoto ainda tentou esquivar-se à tarefa, mas acabaria por engendrar essa solução que não…

Em minha casa, as estantes continuam tão desorganizadas como sempre, mas a história de Zenódoto leva-me a olhar de outra forma para a biblioteca doméstica. Volta e meia, imagino como ficariam os livros organizados por autor, em vez da balbúrdia atual em que o critério para duas obras estarem juntas tanto pode ser o tema (história do século XX, por exemplo), como o género (biografia, poesia) ou a cor da lombada.

Pensando em termos de autores, a letra S é sem dúvida uma das mais bem servidas do meu modesto espólio. Em primeiro lugar, por motivos de natureza familiar. Pertenço a um clã ligado às letras e, como é natural, possuo muitas  obras assinadas por membros da família Saraiva. Estão aliás em boa companhia: Saramago, Sebald, Sontag, Soljenitsin ou Saint-Exupéry são exemplos disso.

Mas há um  nome menos sonante do que estes cinco de quem, ao longo dos anos, tenho colecionado uma mão-cheia títulos: Oliver Sacks. Reparei nele pela primeira vez na ficha técnica de um filme, Despertares, que conta a história de um jovem neurologista (Robin Williams) e de como revoluciona a vida dos seus pacientes. Um crítico do Washington Post descreveu assim a obra em que a fita se baseia: «Não se trata apenas de uma série de histórias espantosas – é também um livro de memórias, um ensaio de moral e um romance”.

Na Autobiografia lançada este ano (e cuja publicação em Portugal aguardamos com expectativa) Sacks revela que decidiu começar a dedicar-se à escrita em 1967, num momento em que, já depois de ter deixado a toxicodependência, estava sob o efeito de drogas. Um dos seus livros chama-se justamente Alucinações. Mas o que me convenceu em definitivo do seu génio foi outro título: O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu. A partir do episódio real de um homem que um dia, ao sair de casa, agarra na cabeça da sua mulher em vez do chapéu, o autor explora os meandros da mente e as partidas que nos prega.

Há uns anos, na Feira do Livro, adquiri a preço de saldo outra das suas obras-primas, Tio Tungsténio – Memórias de uma Infância Química. É um relato apaixonante que intercala histórias da vida de uma criança (o próprio Sacks) com episódios da história da ciência. Filho de médicos judeus, o autor recorda um tio que possuía uma fábrica de lâmpadas, a esquizofrenia do seu irmão (que talvez o tenha influenciado a seguir o estudo do cérebro) ou como um dia pôs um polvo vivo na banheira do seu quarto de hotel.

Sacks era um médico com uma carreira brilhante, não um profissional da escrita. E, ainda assim, dominava tão completamente esta arte que não pude ler Tio Tungsténio sem um misto de admiração e de inveja. Agora que morreu, é graças a essa combinação rara de talentos que podemos continuar a usufruir do seu intelecto. 

jose.c.saraiva@ionline.pt