Calvino à boleia de um clássico

       

Adorava o cinema, e contra todas as regras de etiqueta ou lógicas de visionamento, chegava às salas depois da hora marcada. Mais que um lapso ou teimosia, seguiu esse “ato bárbaro” do público italiano, e ainda dedicou algumas linhas aos meandros do atraso. “Antecipámos as mais sofisticadas técnicas narrativas, interrompendo a linha temporal e transformando a história num puzzle, para juntar peça a peça ou aceitar este corpo fragmentado. Para nos consolar ainda mais, diria que assistir ao desfecho sem conhecer o princípio é safisfação extra: descobrir não os mistérios, mas a sua génese”.

O método não linear aplicava-se às fitas que marcaram a adolescência, no prêambulo da II Guerra, como Revolta na Bounty ou os musicais com Fred Astaire e Ginger Rogers – até que em 1941 a Itália impunha um embargo à produção made in Hollywood, “um dos primeiros vetos a afetar-me diretamente”, recordou o escritor à The New York Review of Books. Títulos para a eternidade, em rebeldia com as censuras, como os muitos que passou em revista em Porquê Ler os Clássicos, agora no domínio dos livros, território fértil para outras descontinuidades.

Henry James, Joseph Conrad, Mark Twain, Gustave Flaubert, Charles Dickens ou Honoré de Balzac são alguns dos nomes obrigatórios nas estantes dos leitores. Seria sereno para Italo Calvino que o corpo de trabalho de um autor é a sua melhor biografia, de tal forma que as versões da vida se tornam intemporais como as obras dos escritores mencionados. Há razão para lê-los, e a primeira de todas acompanha o título na capa da obra, publicada em Portugal pela primeira vez em 1991, agora relançada pela Dom Quixote: “Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”. Como o inesgotável autor de Cidades Invisíveis e Se numa Noite de Inverno um Viajante, que há 30 anos justificava as palavras que o crítico literário John Gardner lhe reservou no obituário do New York Times: “Possivelmente o mais brilhante autor italiano”, lia-se a 20 de setembro de 1985, um dia depois da sua morte, em Siena, aos 61 anos, na sequência de um acidente vascular cerebral.

Nascido num subúrbio de Havana, filho de um agrónomo que passou boa parte da vida em destinos tropicais, e de uma botânica, natural da Sardenha, regressou com os pais a Itália pouco depois do seu nascimento, a 15 de Outubro de 1923. Cresceu em San Remo e ingressou no departamento de agronomia da Universidade de Turim, para uma breve experiência. Com os alemães a ocuparem a Ligúria e o resto do norte do país, Italo e o irmão de 16 anos associaram-se à Resistência. A estreia na escrita teve a II Guerra em pano de fundo, bem como a transição para a literatura.

Pela mão de Pavese

Em 1947 lançava O Atalho dos Ninhos de Aranha, encaminhado pelo escritor Cesare Pavese para a editora Einaudi, à qual Calvino haveria de estar ligado ao longo da sua vida. O pós-guerra foi marcado pela adesão ao Partido Comunista (que abandonaria em 1956, quando a União Soviética invadiu a Hungria), e com a publicação do segundo título, O Visconde Cortado ao Meio, também agora reeditado, a demorar cinco anos. Primeiro volume da trilogia Os Nossos Antepassados, seguido de O Barão Trepador e de O Cavaleiro Inexistente, deu à estampa entre elogios e críticas de quem reprovou o afastamento do estilo realista, contagiado pela fantasia que haveria de continuar a fazer caminho no trajeto literário do escritor. É esta a história de Medardo de Terralba, visconde ferido em combate durante a guerra com os turcos, cujo corpo foi partido em dois bocados, um recuperado, outro conformado com um funeral cristão. Regressado à terra natal, em revolta com a sintonia da natureza, começa a cortar tudo o que vê em dois.

Em tempos fragmentados, vale a pena retomar Seis Propostas para o Próximo Milénio, compêndio de pensamentos filosóficos que o autor deixaria incompleto, morrendo antes de se debruçar sobre ‘Consistência’, o sexto e derradeiro pilar, adiantado pela viúva do contista, romancista e autor de livros para crianças, Esther Calvino, com quem se casara em 1964, em Cuba, cenário onde se instalou em 1967.

Data de 1983 o último título publicado em vida, Palomar, manual de interrogações com espaço para o texto ‘Como aprender a estar morto’.

maria.r.silva@sol.pt