O amor separar-nos-á?

A rotina começou por imposição da profissão. Fotojornalista em títulos como a Ler, O Independente ou o SOL, abrir jornais e colecionar notícias tornou-se um hábito diário de João Francisco Vilhena, para responder à voracidade da agenda noticiosa, mas também como método para alimentar a imaginação e acumular ideias para projetos pessoais. O que agora…

A vontade de aprofundar o tema da violência doméstica ganhou relevância nesse momento, mas em vez da abordagem jornalística que o comprometia a ser objetivo, decidiu desenvolver um olhar individual sobre o assunto, estando cada vez mais atento aos casos reais noticiados na imprensa e documentando-se com algum material académico. O horror que encontrou relatado nos textos tornou-se catalisador definitivo para avançar com o projeto, mesmo que a sua concretização teimasse em não acontecer devido a outras solicitações profissionais.

Foi quando estava prestes a terminar um livro dedicado ao Nobel da Literatura  português – intitulado Lanzarote, A Jenela de Saramago -, que a luz verde se iluminou. Ana Matos, diretora artística da Salgadeiras, convidou-o para fazer uma exposição na galeria e João Vilhena nem precisou de pensar duas vezes. Seria sobre violência doméstica, valorizando assim o saber acumulado ao longo destes anos todos e chamando a atenção para um assunto que o perturba há anos. Só em 2014, por exemplo, segundo dados da União de Mulheres Alternativa e Resposta, 42 mulheres foram assassinadas pelo atual ou pelo ex-companheiro, com 30% das situações a acontecerem quando a vítima já estava separada do agressor.

É por isso que cada obra exposta tem um nome feminino, mas em vez de fotografar mulheres, João Vilhena optou por um caminho mais conceptual. Concentrou-se nos objetos usados para cometer o crime passional, fotografando-os como naturezas mortas. “Todos os objetos têm design, foram desenhados por alguém que pensou neles quase como peças artísticas. É possível olhar uma pistola e apreciar o seu design. O Philippe Starck, por exemplo, desenhou um saca-rolhas e um espremedor de limão e temos aquela morte horrível que aconteceu com o Carlos Castro com um saca-rolhas”, comenta o artista, revelando que esta perceção fê-lo perceber “que queria fotografar os objetos como se fossem joias numa vitrine”.

Mas nestas imagens há um senão. Por trás da beleza minimalista que João Vilhena destaca nas suas imagens a preto e branco, cada objeto representa uma vida perdida. Daí que tenha dado a cada obra o nome de uma mulher que morreu nas mãos do companheiro e as apresente em dípticos, reforçando a sua carga simbólica ao associar uma cruz a cada peça. “Quando morremos, o nosso nome perdura numa lápide e numa cruz em cima da terra. Quis trazer esta nossa tradição judaico-cristã representativa da morte”.

Servindo-se da mesma determinação que ditou o ato de colecionar notícias sobre violência doméstica, o fotógrafo deambulou durante dias por vários cemitérios da capital em busca das cruzes mais invulgares e, por cada dia de repérage, regressou sempre para casa com “centenas de imagens”. Material editado, seguiu-se o processo de identificar as semelhanças entre cruzes e objetos, de forma a que a comunhão transparecesse em cada díptico.

A par das fotografias expostas, O Amor Mata inclui ainda uma instalação imagética e sonora, com o coração do artista a ser, literalmente, o mote da peça. De um intenso e vívido vermelho, a contrastar com o preto e branco que domina a exposição, o que ali vemos é, de facto, o órgão de João Vilhena, resultado de uma ressonância magnética que o fotógrafo fez no início do ano quando estava prestes a completar meio século de vida. É o único homem representado e é, também, a única imagem a cores da mostra. Como devem ser, aliás, todos os amores.

alexandra.ho@sol.pt