Tiago Rodrigues: “Partilhava o preconceito que o público do D. Maria II é conservador. Estava errado”

O fascínio pelo teatro começou ainda em criança, ao ver revista à portuguesa no Parque Mayer com a ama. A tradição manteve-se até à adolescência, altura em que entrou para o grupo de teatro do liceu da Amadora, onde cresceu. Mais tarde ponderou ser jornalista como o pai, mas percebeu que mais do que relatar…

As primeiras memórias que tem de teatro são do Parque Mayer. O amor pela área começou aí?

Sim, ganhei amor ao teatro a ver revista em criança. Tinha uns sete, oito anos quando comecei a ir com a Dª Cassilda, uma avó emprestada que tomava conta de mim. Ela ia regularmente à revista e havia esse ritual. Arranjava-se, vestia a sua roupa toda bonita, punha os seus brincos de minhota e levava-me pela mão. Eu adorava e tornou-se uma tradição nossa. Durante a adolescência toda continuei a ir à revista com a Dª Cassilda, pelo menos, uma vez por ano. E lembro-me de ter ido quando já era ator profissional.

 

Ela chegou a vê-lo representar?

Não, nunca me viu como ator. Ela agora vive no Minho e viu, há dois anos, com 95 anos, uma peça minha pela primeira vez, Três Dedos Abaixo do Joelho. Pode ser que ainda me veja como ator, talvez eu consiga ir a Monção. Mas foi muito engraçado porque o Três Dedos Abaixo do Joelho, sendo uma peça sobre a censura ao teatro, é sobre a história do teatro e acaba por falar da revista. Diz-se, inclusive, Parque Mayer durante a peça.

 

A revista não é um género fácil para uma criança entender. Não se aborrecia?

Pelo contrário. Aquele movimento, aquele brilho todo era muito apelativo. Grande parte das vezes não entendia aquela malícia toda e o lado brejeiro, mas achava fascinante porque era um sítio onde as pessoas eram diferentes. A extravagância, a loucura, o facto de se ser amado, de se existir, através do riso. Isso foi muito marcante e, em criança, tentava imitar isso, queria ser aceite pelos outros através da piada, do humor.

 

O desejo de fazer vida no teatro vem então desses tempos?

Nunca tive o desejo de fazer teatro, mas sim o fascínio. Sempre me espantou, e continua a espantar, o facto de haver pessoas que saem de casa e vão para um sítio, sentam-se ao lado de imensos desconhecidos, para ver uma coisa que não sabem o que vai ser, mas esperam gostar. O trabalho a que as pessoas se dão para oferecer o seu tempo ao teatro é uma coisa que continuo a achar quase revolucionário, sobretudo neste tempo em que as solicitações são ‘fica em casa, no sofá, não tires os olhos do ecrã, a vida está toda aqui, mesmo ao pé do teu corpo’.

 

Em que medida esse lado revolucionário está presente no teatro que faz?

Ao contrário do que muitas vezes se diz, não acredito que o teatro seja um sítio para onde vamos para nos esquecermos das nossas vidas e entrar num outro mundo de ilusão. A ilusão é muito interessante no teatro, mas como ferramenta para nos pôr a pensar sobre o nosso mundo, sobre quem somos, sobre como vivemos. E pensar também é lúdico, é divertidíssimo. Interessa-me, por isso, um teatro que questiona e propõe uma coisa que não se sabe ainda o que é, ou seja, o contrário de uma produção industrial em que o espetador comprar um bilhete para ver uma coisa que já sabe o que é. Acredito num teatro em que o espetador faz uma aposta, numa espécie de roleta, e compra um bilhete sem saber ainda o que lhe vai acontecer. Aí há um risco partilhado: os artistas estão a partilhar uma forma que ainda não sabem se funciona e o espetador partilha desse risco dando o seu tempo a algo que pode correr bem ou mal. É nessa dose de mistério que está a urgência de continuar a fazer teatro e, quando é preciso que as pessoas se juntem numa sala para que ele aconteça, ganha uma natureza política.

 

Usando a sua metáfora da ‘roleta’, cada peça é então um ‘tiro no escuro’?

É uma aposta no artístico, na procura de encontrar algo, mais do que novo, singular, autêntico, urgente. Quando se faz isto há muita diversão dentro. Por alguma coisa em Portugal falamos, e somos das poucas línguas em que isso acontece, de fruição artística na Constituição. O direito constitucional dos portugueses é ter acesso ao prazer através da arte. É absolutamente essencial mesmo quando vemos a tragédia mais feroz, a peça mais crítica, o questionamento mais complexo, denso ou filosófico.

 

Assumiu a direção artística do Teatro Nacional D. Maria II em janeiro, mas só este mês é que se começou a conhecer a temporada desenhada por si. Abrir com três tragédias gregas – Ifigénia, Agamémnon e Electra – foi uma forma planeada para fazer uma transição suave entre o que é o Nacional e o que quer fazer dele no futuro?

Sim, foi pensado. Se não tivesse vindo para o D. Maria, estas tragédias não seriam o meu próximo espetáculo. São fruto de uma reflexão sobre o que é o meu percurso artístico a partir do momento em que assumo a direção do Nacional. Depois havia várias questões: como me relaciono com a missão do teatro, com o seu passado e, por outro lado, como me relaciono com os seis atores fixos do teatro. Estas tragédias proporcionam um encontro entre aquilo que é o meu desejo artístico e a história do teatro, e apresentam uma mistura que só poderia acontecer aqui, neste momento: estão os seis atores do Nacional, seis jovens recém-formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema [ESTC] e três atores que têm colaborado comigo nos últimos anos [Isabel Abreu, Miguel Borges e Flávia Gusmão].

 

É, portanto, a sua declaração de intenções?

O convite para diretor artístico é, para já, o convite a um artista. Isso faz com que haja um cunho autoral inevitável na forma como se aborda a direção do teatro. Os primeiros dois meses foram de diagnóstico, serviram para perceber como o meu trabalho podia dialogar com a missão do teatro, missão essa que está consagrada na lei: o D. Maria é um teatro de repertório que, entre outras coisas, tem de tornar acessíveis os grandes textos da dramaturgia universal. A forma como interpreto isso é tornando os grandes clássicos vivos e presentes. Mostrando como o passado é útil para falar dos nossos dias, como as histórias de Ifigénia, Agamémnon e Electra são ideias que estão presentes nos nossos dias. Se disser ‘eu sou ator, chamo-me Tiago, estou aqui hoje’ estou a usar as palavras que Eurípedes escreveu, e mais presente do que isto é impossível. Ao usar estas palavras, mesmo que adulteradas, estou a fazer uma coisa que a política e a vida pública têm cada vez mais dificuldade em fazer: vivemos tempos de uma aceleração alucinante, reféns de uma velocidade que muitas vezes não é urgente, porque há uma diferença entre pressa e urgência, e o teatro é um lugar da urgência com a consciência do tempo. A política é cada vez mais um lugar da pressa sem a noção do tempo, sem uma noção de passado e de futuro.

 

Porque não estrear uma tragédia em vez de três?

É uma dose de risco, quase de irresponsabilidade, que gosto de correr. Tratar o teatro com a urgência do traço a carvão, muito mais do que da aguarela meticulosa. Interessa-me perseguir esse teatro que está profundamente empenhado na necessidade vital de acontecer – e que, portanto, arrisca a imperfeição, o ruído, a irregularidade -, do que criar espetáculos estilizados, perfeitos, acabados.

Que relação tem com estes textos?

Das três, Ifigénia é um texto que sempre me acompanhou e onde é muito clara uma das ideias que me interessam mais na tragédia grega: a tragédia é o que nos acontece e que é inevitável, como se o destino estivesse escrito, mas o herói ou heroína trágica conseguem sempre libertar-se, aceitando o seu destino. A Ifigénia, que vai ser sacrificada para que os gregos ganhem a guerra de Troia, a certa altura diz: ‘Não são vocês que escolhem sacrificar-me, sou eu que escolho morrer e assim liberto-me’. Neste gesto está a essência da tragédia, mas também a essência do livre arbítrio, da libertação. Este gesto de liberdade foi sempre o que me interessou na leitura das tragédias porque tem qualquer coisa que não conseguimos completamente explicar. É essa dose de mistério que as grandes obras de arte – talvez também as pequenas, como aquelas que eu faço -, têm a oferecer à sociedade.

 

Desde que tomou posse a palavra ‘renovação’ tornou-se recorrente no seu discurso. O que é urgente renovar?

Muita coisa, mas quando alguém com o meu percurso e a minha idade é convidado para dirigir o D. Maria, necessariamente há uma vontade de mudança e renovação. Quando fui confrontado com o facto de ser o mais novo diretor do Nacional (só soube quando cá entrei), percebi que isso também tinha que ter um significado. Uma das renovações passa por abrir as portas do teatro a projetos e companhias que nos últimos anos não têm apresentado muito o seu trabalho aqui, mas que devem ter o espaço e a visibilidade que o Nacional lhes pode dar, tais como Tónan Quito, Miguel Loureiro, Primeiros Sintomas, Mala Voadora, Rui Catalão, Rui Horta, Ana Borralho e João Galante… Outra das coisas que implica renovação, como já falámos, é a relação com o texto antigo, interpelá-lo com as linguagens do presente. Depois é preciso assumir que o D. Maria é um teatro nacional e, como tal, deve circular mais pelo país, não só por cidades que já têm teatros e programações regulares, mas também por zonas onde normalmente a oferta é escassa. Para isso, vamos formar ao longo da temporada uma rede para que teatros municipais de zonas carenciadas recebam três vezes por ano espetáculos criados no Nacional. Até aqui, o D. Maria fazia muito pouca digressão e muito esporádica. Achamos que deve fazer mais e regular. E esta oferta implica voltar, voltar, voltar, voltar, até que o sítio precise. Esta é uma ideia do Almeida Garrett, que fundou o D. Maria. É preciso oferecer, oferecer, oferecer até que haja uma procura desesperada e aí a oferta está justificada. O teatro investe dinheiro público para ir a sítios onde há portugueses que de outra forma não têm acesso a teatro. Onde têm acesso também vamos, mas aí são esses sítios que nos convidam.

 

Também tem falado na internacionalização…

O D. Maria é um teatro nacional de uma capital europeia, tem de ter uma dimensão internacional. Desde que chegámos o teatro já fez mais digressões no estrangeiro do que em toda a sua história.

 

Mas isso só porque cedeu os direitos das suas peças ao Nacional.

Sim, integrei as minhas peças, gratuitamente, no repertório do Nacional. Não me sentiria confortável com a ideia de tomar uma decisão que depois me iria beneficiar financeiramente, mesmo que legalmente fosse possível fazê-lo. Recebo o meu ordenado como diretor artístico e não recebo nem mais um euro por encenar uma peça, duas ou três, ou por fazer digressão por peças minhas antigas. Qual o fruto desta decisão? Uma digressão em oito países, que permite abrir portas a que futuros espetáculos, não só meus, sejam apresentados no estrangeiro. Já aconteceu uma coisa excecional: pela primeira vez o D. Maria está em vias de integrar duas redes de festivais internacionais. Isso permitirá trabalhar com grandes festivais e permitirá afirmar o teatro, a produção e os artistas portugueses no mundo.

 

O que pensa o estrangeiro sobre o teatro português?

O que sinto da parte dos nossos parceiros europeus é que há uma grande curiosidade, como um reconhecimento de que há muita qualidade, diversidade e vitalidade no teatro que se faz em Portugal.

 

Disse que os dois primeiros meses como diretor foram tempos de diagnóstico. Encontrou um teatro à imagem da ideia que fazia dele?

Há vários preconceitos associados ao D. Maria, alguns que já sabia não serem verdade e outros que também partilhava. Um deles, falso, é o de ser um teatro antiquado e demasiado solene, onde as coisas são levadas muito a sério [engrossa a voz]. É verdade que é um monumento nacional, e os mármores e veludos impressionam, mas o teatro é um lugar do que acontece hoje, independentemente da sua arquitetura. E o que acontece no D. Maria poderia acontecer no Scala de Milão ou numa cave do Cais do Sodré. É um espaço aberto a todas as formas e o que queremos é tornar isso a reputação do D. Maria a partir de agora. Outro preconceito, que eu partilhava, é o de que temos um público mais envelhecido e conservador. É verdade que temos um público de uma faixa etária acima dos 50 anos, mas que não é nada conservador. Nas minhas primeiras semanas aqui, estive diariamente no átrio de todas as entradas de público e percebi que, até em espetáculos mais arriscados, com uma forte dose de experimentação, como Pirandello, da Mala Voadora, esse público aderia tremendamente. Em conversas com os espetadores percebi que este público, que há 40 anos é militante desta casa, tem uma cultura teatral incrível. Alguém que viveu em Portugal entre 1978 [quando o teatro reabriu depois do incêndio de 1964] e 2015, e foi ao teatro todos os meses, é tudo menos conservador. São pessoas que conseguem perceber as linguagens que estão a ser desenvolvidas em palco, que gosta do risco e de serem surpreendidas.

 

Com este público, a peça que escreveu, encenou e interpretou com Gonçalo Waddington, O Que Se Leva Desta Vida, não seria mal entendida como foi há seis anos no São Luiz?

Esse espetáculo já é mítico no meu percurso, é a minha Sagração da Primavera [risos]. Nessa noite houve uma espécie de levantamento popular durante o espetáculo porque era um público que esperava ver uma revista à portuguesa e, de repente, confrontou-se com um espetáculo que além de não vir preparado para ver, não o desejava ver. E deu-se aquela indignação. Curiosamente, no final só houve uma reclamação, de um espetador a dizer que o grupo fazia muito barulho. Aqui não haveria nada disso. O público do Nacional está habituado às formas mais díspares e já viu coisas muita mais arriscadas. Viu, por exemplo, a Companhia Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, que introduziu os realistas americanos em Portugal numa altura em que era polémico fazê-lo. Fazer Tennessee Williams levantava questões morais sobre a função da mulher em palco.

 

Como combater esses preconceitos?

Começamos já este fim-de-semana com o Entrada Livre, cuja ideia é escancarar as portas do teatro e convidar as pessoas a entrar gratuitamente. O momento é de grande prazer, há qualquer coisa aqui do momento de abrir os embrulhos na noite de Natal. Depois toda a programação foi pensada nessa lógica de olhar para a história do teatro e perceber como é uma ferramenta do presente. E olhar para a história do D. Maria também é perceber que, como muitas instituições em Portugal, o Nacional tem sido refém, independentemente dos governos, de uma rotatividade constante de direções. Se, por um lado, essa rotatividade garante diversidade, muitas vezes coloca o problema de, quando um projeto começa a impor-se, a direção muda.

 

Discutiu isso com o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, quando aceitou o convite para a direção?

Sim, passei a mensagem de que devia haver um contrato-programa para o próximo triénio, ou seja, até 2018, a data a que corresponde o nosso mandato. Na prática, esse contrato continuará dependente do Orçamento do Estado, porque é o Orçamento que deve confirmar esses valores, mas existe uma negociação anterior que permite ao Nacional saber qual vai ser o seu percurso orçamental nos próximos anos. Se souber agora quanto tenho para gerir nos próximos três anos, a gestão vai ser muito mais eficaz, em vez de só saber no início de 2018 e não poder assumir compromissos prévios.

 

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Ainda assim, este ano o orçamento do D. Maria (de 861 mil euros para programação) teve um reforço de 163 mil euros em relação ao ano passado.

Foi uma negociação direta com a tutela, uma vez que, nos últimos anos, houve cortes progressivos no orçamento do Nacional, que fazem com que hoje o teatro trabalhe com menos cerca de 40% do orçamento de programação do que há seis anos. Este reforço acontece pela primeira vez em seis anos.

 

Em termos de espetadores, o orçamento condiciona a adesão?

Os números de 2009 e 2010, que correspondem à direção de Diogo Infante, foram bastante mais altos do que os de 2014 (cerca de 70 mil espectadores) e penso que esse decréscimo também está associado aos cortes no orçamento. Daí a necessidade de saber atempadamente qual vai ser o orçamento do mandato inteiro, de forma a ganhar-se um horizonte.