O eterno deputado

O calor de agosto apertava em Los Angeles. À entrada da pista, ponto culminante da prova, chegava um discreto viseense que já tinha dado nas vistas em provas de atletismo numa edição anterior dos Jogos Olímpicos. Entrou primeiro no estádio e, à distância de milhares de quilómetros dali, com o fuso horário a exigir esforço…

O eterno deputado

Para quem não viu, recorde-se que, ao vencer essa maratona em 1984, Carlos Lopes trouxe o primeiro ouro olímpico para Portugal e um recorde mundial da prova que iria durar 24 anos. Para o país, foi preciso esperar 88 anos e 23 edições de Jogos para poder ouvir o hino, ver pela TV as lágrimas do atleta e todos esses rituais que em alguns países já eram trigo limpo.

Ninguém reparou, na altura, na personagem central desta história. E quem poderia reparar, perante a solenidade do momento? A descer a bancada, muito emocionado, um jovem secretário de Estado do Desporto iria entregar a bandeira nacional a Lopes para a volta da consagração. E se agora é visto publicamente como uma peça fundamental da nossa democracia, uma cara familiar que às vezes conseguimos vislumbrar em horários televisivos, na época ninguém fazia ideia de que aquele primeiro instantâneo de alegria coubesse a Júlio Miranda Calha. “Foi um momento de particular emoção”, diz hoje, com um inconfundível estilo contido.

Sobre esse episódio já se passaram mais de 30 anos e três medalhas de ouro adicionais para os portugueses nas olimpíadas. Mas não há vez como a primeira. Miranda Calha acabaria por ficar mais conhecido como um dos artífices da candidatura de Portugal à organização do Europeu de futebol em 2004.

Apesar destes dois marcos desportivos, a carreira do deputado ultrapassa e até deixa a grande distância as matérias do desporto. Se é para falar de momentos marcantes, podemos deixá-lo  guiar-nos pela História da democracia portuguesa que se confunde com a cronologia da sua vida. A partir destas eleições, que se realizam a 4 de outubro, Miranda Calha será o único deputado português a ser eleito sucessivamente desde as primeiras eleições livres e universais da História portuguesa, para a Assembleia Constituinte, em 1975.

A data redonda motiva, com certeza, grandes recordações. Carlos Lopes, a medalha de ouro e o Euro 2004 acabam por ficar arredados para a galeria dos fait divers. Com poucos momentos de intermitência, Miranda Calha viveu por dentro a democracia, a partir do centro, do hemiciclo em São Bento. Pelo meio foi por diversas vezes secretário de Estado – do Desporto, lá está, por isso estava em Los Angeles naquela tarde de agosto de 1984, mas também da Defesa e da Administração Regional e Local – e é, embora de forma sempre discreta, uma figura de proa da própria história do PS.

No currículo ainda cabem outros cargos em comissões parlamentares. Mas é melhor ouvi-lo antes de continuar a listar itens de um currículo. O momento de ser eleito para realizar o documento de fundação da democracia, a Constituição, continua retido, quase incólume, na memória: “A Constituinte foi uma fase muito forte da nossa democracia. Tínhamos um mandato para fazer uma constituição, mas ao mesmo tempo estava a decorrer nas ruas um movimento quase revolucionário”, recorda. “E enquanto nós discutíamos a Constituição na AR, o exterior estava numa evolução muito rápida. Os governos mudavam rapidamente, houve as nacionalizações, aconteceram processos da reforma agrária…”.

Até ao 25 de Novembro, com o país ao rubro – literalmente – na própria constituinte levantavam-se as vozes e às vezes voavam objetos das galerias para as bancadas. E vice-versa: “Havia, nos lugares onde nos sentamos, uma espécie de conchas em metal que eram os cinzeiros”. Sim, também se fumava e muito na AR, para expelir a tensão. Miranda Calha continua: “Na altura da Constituinte, algumas daquelas coisas voaram. Às vezes vinham pessoas assistir às sessões que atiravam algumas coisas lá para baixo e às vezes havia respostas. Algumas coisas voavam cá de baixo, moedas por exemplo. Houve aqui debates muito acesos”.

Para um deputado recém-eleito, em pura atmosfera de novidade e rebuliço, ainda sem 30 anos de idade completos, a receita foi empolgante. Do parlamento, cujas paredes contavam histórias de ditadura, e albergavam membros que escapavam ao sufrágio universal até à entrada de cidadãos eleitos, parecia ter sido um passo. Mas o edifício era um pouco vazio para a prática democrática. “Nos primeiros tempos, praticamente só tínhamos a cadeira onde nos sentávamos no plenário”, conta Miranda Calha, à medida que conduz uma visita pelos seus locais de eleição. “As reuniões do nosso grupo parlamentar eram feitas naquilo que é hoje a biblioteca”.

Se o cenário parece absurdo, agora que a Assembleia da República (AR) tem uma estrutura sólida, recheada de gabinetes, tecnologia, arte e memória por todos os lados, ninguém parecia esmorecer no dia-a-dia do plenário. As discussões calorosas, sob a batuta de Henrique de Barros, que presidiu à Assembleia Constituinte – Miranda Calha faz questão de parar diante do retrato de Barros e assinalar a sua “figura marcante na nossa república” – tentavam o equilíbrio entre o que reivindicava o poder popular, na rua, e o esforço de fazer um documento para construir “uma democracia representativa europeia” e não uma república popular.

O auge desse conflito deu-se com o cerco ao parlamento por operários da construção civil, a 12 de novembro. Alguns deputados, lembra, “reuniram-se no Porto” para continuar os trabalhos da Constituinte. Mas, no dia seguinte, o cerco desmobilizou-se.

O trajeto de memórias prossegue, e tem forçosamente de parar nos Passos Perdidos que, ao longo da história deste edifício, serviram de palco a trocas de informação e ao esboço de decisões fundamentais. No tempo da democracia, acentuaram a importância como espaço de debate. E no tempo da Constituinte os deputados chegavam a ficar sentados, ou mesmo deitados neste espaço. Deviam chamar-se antes, defende o deputado, “Passos Achados”.

Nesta parte da viagem pela memória, é preciso encontrar o presente. O que pensa um dos responsáveis pela Constituição da República do clima de conflito que se gerou entre algumas medidas propostas pelo governo atual e o Tribunal Constitucional (TC)? Fala novamente a contenção: “O que se passou nestes últimos anos foi que, de facto, houve um conjunto de iniciativas para enfrentar este problema da necessidade do resgate do país. Mas, muitas delas ultrapassaram as condições adequadas para fazer face à resolução deste problema”.

Confiar na Constituição

Valeu-nos o TC? “Teve, evidentemente, um papel preponderante. Até para saber até onde se poderia ir ou não. O governo atual funcionou muito perto das fronteiras da constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Por isso foi importante que este órgão se pronunciasse sobre algumas medidas. Há direitos fundamentais que têm de ser garantidos, um deles a própria questão da confiança”.

Os pensionistas são exemplo desse fogo cruzado. “Está-se a atingir pessoas que já não voltam ao  mercado de trabalho e que já estão numa situação, muitas vezes, com problemas diversos da sua sobrevivência”.

Miranda Calha já apresentou, entretanto, a sala da Comissão Parlamentar de Defesa – que também presidiu, em duas ocasiões – e já falou, mais em detalhe, do seu gabinete atual, de vice-presidente da AR. Lá está um quadro de Graça Morais trazido pelo deputado. Entre outros elementos, pode lá ser visto um ramo de oliveira. Assim “temos um toque de Alentejo”, brinca Miranda Calha, a recordar as origens.

Nascido em 1947 em Portalegre, foi sempre eleito por este círculo eleitoral até à última legislatura, iniciada em 2011, quando concorreu pelo Porto. Agora integra as listas de Lisboa. Estudou Letras na capital (Filologia Germânica) e voltou à terra para dar aulas no ensino secundário.

Foi sol de pouca dura, e tudo se foi precipitando. “Tinha uns 23, 24 anos e convidaram-me para ajudar a abrir uma escola de ensino preparatório. Depois, fiz o meu estágio pedagógico e a meio já era deputado da Assembleia Constituinte”. Mas não quis perder de vista a profissionalização no ensino. As eleições sucessivas para o Parlamento iriam, porém, retirá-lo da cátedra e da cidade natal.

Enquanto desce as escadas em direção a outro ‘toque de Alentejo’, mais um espaço emblemático da AR, o Jardim das Oliveiras, Miranda Calha acaba por reconhecer que a instituição ocupou-lhe mais do que meia vida.

Portugal na CEE

É tempo então para mostrar, no plenário, o local que costuma ocupar. O da virtude? “É normalmente a meio, e varia, conforme a nossa representação é maior ou menor”.

Em todos estes anos, guarda vários momentos marcantes além da Constituinte. No documento que concretiza a adesão de Portugal à então CEE, em 1985 – e que completou recentemente três décadas, este é decididamente um ano de efemérides e contas redondas – está lá a sua assinatura. “Tinha havido uma alteração em termos de responsável do ministério [da Qualidade de Vida] e eu é que estive presente na reunião do conselho de ministros, portanto, acabei por ser eu a fazer essa assinatura, que é um momento histórico para Portugal”.

Haverá algum momento em que não se confunda com a história da democracia? É difícil responder. E quais foram os momentos mais traumáticos? Pondo de parte a Constituinte, já muito recordada aqui, há o momento da queda do I Governo Constitucional, uma emoção vivida de lágrimas nos olhos por muitos, mas de alegria. “Era a primeira vez que caía um governo dentro das regras normais em democracia, sem golpe de estado”.

O regime foi-se consolidando, sempre com Miranda Calha como personagem ativo, a dizer presente. A marca forte daqueles anos ninguém lha tira: “Havia uma enorme generosidade naquela época”, recorda. “Debatia-se política, ideias em relação àquilo que devia ser a evolução de Portugal”. Lembram-se?

ricardo.nabais@sol.pt