Hélia Correia: ‘Já não consigo estar sozinha com as minhas palavras’

O que faz um escritor depois de um prémio de vulto? Após receber o Camões, Hélia Correia garante que nada mudou na sua vida, pessoal e literária: segue o mesmo ritmo, viaja da mesma maneira – em busca dos trajetos de alguns heróis literários –, e escreve do mesmo modo, sempre que lhe surge uma…

Ainda está na ‘ressaca’ do Prémio Camões? Como vive um escritor a seguir a um prémio desta envergadura?

Não posso responder. Não me sinto nem escritora, nem sequer a fazer parte, no meu comportamento e na minha filosofia de vida, de um grupo intelectual – cujos membros eu prezo e amo muito, de um modo geral – que não sinto como meu. É claro que cria um grande frenesim. Começou logo no próprio dia. Felizmente tive o meu namorado [o escritor e jornalista Jaime Rocha], que mediou a relação entre mim e as pessoas.

Mas esse frenesim não teve impacto na sua vida?

Continuei no meu ritmo, que é muito especial, muito lento, muito recolhido. Mas é sempre qualquer coisa que eu não entendo. Creio que nunca perceberei por que é que a atribuição de um prémio literário dado por pares cria um impacto nos media que a publicação de um grande livro não cria. E as pessoas funcionam como se fosse um acontecimento. E não é um acontecimento mediático, é literário.

Mas essa ideia não pode ser uma pescadinha de rabo na boca? Se os media não dão o relevo ao prémio não podem ser acusados de não dar importância à cultura?

Parece-me haver um grande desequilíbrio na atenção que se dá quotidianamente à literatura e à cultura. Daí a minha estranheza. As páginas dedicadas à cultura são cada vez em menor número. Há belíssimos livros publicados que são completamente silenciados. Acho que devo aceitar o prémio como devo aceitar uma flor com que alguém me chegue aqui a casa. Se me é dado por pessoas que eu amo, que admiro, e cuja lucidez crítica eu aceito, não me vou esconder em casa como uma diva dos anos 30. E embora mantenha essa distância em relação a essa bulimia mediática, também não vejo razão para não conversar com jornalistas.

Não ficou orgulhosa? Não estava à espera de um reconhecimento desta dimensão?

Não [risos]. Considero que o júri foi extremamente generoso. No meu entender, não tenho uma obra que possa equivaler à de outros contemplados. À do Mia Couto, por exemplo, que se destaca em absoluto no panorama das literaturas da língua portuguesa. Não me pesou nada. De modo nenhum, até porque não sinto que tenha mérito, que faça um trabalho.

Sempre disse isso. Por outro lado, para si o exercício literário parece mais um conflito do que uma urgência ou uma necessidade de comunicar algo que lhe vai na alma…

O conflito que existe é entre a minha extrema preguiça e a vontade de uma frase que aparece e que às vezes espera meses para ser escrita. O resto é extremamente pacífico porque é passivo. Não decido as coisas, não faço nada por vontade, por intenção, muitíssimo menos por espírito de missão. Não escrevo para comunicar com ninguém e ainda menos para exteriorizar os meus sentimentos pessoais. Eu sou eu, a escrita é a escrita. Há momentos raros em que há realmente necessidade de passar qualquer coisa para outros. E essa coisa é sempre uma interrogação, mas são momentos em que o real é de tal modo perturbador e intenso que já não há paz interior num cidadão atento. No meu caso, já não consigo estar sozinha com as minhas palavras, com o meu tempo, com o meu espaço, porque o real é tremendo. E entra no nosso quotidiano e seria uma grande cobardia tentar fugir-lhe. E aí, u as palavras do texto são, digamos, esbofeteadas por essa realidade.

O real entrou sem bater à porta, ainda mais com o estalar desta crise? Já disseram que escreveu o poema da crise, A Terceira Miséria… Como encontra a frase ou a personagem?

No real não as encontro. Quando falo desta invasão do real no que escrevo é, realmente, a partir de A Terceira Miséria e nas coisas que estou a escrever e que penso escrever brevemente. Não no passado.

Sempre sentiu a crise grega de uma forma muito aguda. E até se vestiu de azul e branco, as cores da bandeira grega, para a cerimónia de entrega do prémio Camões.

É verdade [risos]. Isso foi pensado.

Depois foi manifestar-se ao Largo Camões, na véspera do referendo grego (4 de julho). Mas essa manifestação contou com pouca gente.

Foi uma sensação terrível. Foi um dia muito quente e eu tinha-me sentido mal, e tinha estado à beira de desmaiar antes de ir. Mas disse que ia de qualquer maneira. Fiz tudo o que podia para reconstituir a capacidade de estar na rua. E depois tive um choque negativo tão grande que pensei que era mesmo melhor ter ido para casa.

Por ter ido pouca gente?

Tão pouca gente… Havia um grupo de pessoas que estavam à volta de quem falava e o resto estava disperso. E havia pequenos grupos que não se encontravam há tempos e aproveitavam para pôr a vida em dia. Era uma indiferença… As pessoas andavam ali a fazer, uma vez mais, o que se anda a fazer, rituais vazios. Estes rituais são o produto de uma dilaceração, as pessoas querem fazer qualquer coisa, mas já não acreditam no que estão a fazer.

Na verdade, o que diz do ritual vazio pode aplicar-se ao referendo grego?

Gostava de saber falar disso, mas não sei.

No fundo, crê que há rituais vazios porque as pessoas já não esperam uma reação a uma manifestação?

Creio que sim. A última manifestação que criou um pouco de respeito pelas coisas da rua foi aquela enorme da TSU. Já passou muito tempo. Os governantes já não têm medo da rua. As pessoas que se manifestam sabem disso. Nos países, enfim, mais acomodados, mais medrosos e agarrados aos seus pequeninos confortos, as pessoas acomodaram-se às formas tradicionais de manifestação. Vão para a rua com o seu cartaz, com aquelas músicas antiquíssimas, com aquelas prosódias, aquelas palavras de ordem. Isso tem uma função catártica mas não tem função posterior nenhuma. Muito francamente, eu também, como cidadã, não vou já a manifestações com a frequência com que ia.

Na Grécia não é tanto assim?

O referendo foi uma coisa admirável. Ninguém estava à espera, nem as pessoas que estavam a fazer a cobertura. Lembro-me que o Daniel Oliveira fez lá uma reportagem muito pessimista na véspera. É um povo que tem duas qualidades. Não sabemos para que vão servir mas estão lá: o sentido de dignidade e a teimosia. É claro que tudo se passa a outro nível, eles têm um grande berço oriental e sabem contornar as coisas de modo elegante e de um certo modo tortuoso que nós não temos tanto [risos]. E a pergunta é, claro, para que serve isso quando nada se passa ao alcance das mãos de um povo? E foi isso que vimos. Foi a alta finança e a política de gabinete que fizeram o que quiseram. Não sei como vai ser, mas se não for aquela gente com aquela dignidade, com aquela teimosia, não há nada a fazer.

O material novo que está a preparar vai situar-se algures nessas crises?

Não posso falar de nada do que estou a fazer [risos].

Diz que gosta de escrever quando chove. Já lhe apareceu a frase?

A primeira já apareceu, já está escrita e esteve meses à espera de o ser. Foi ao ponto de eu ter medo de a perder, que tudo se zangasse e se fosse embora. Resolvi escrevê-la mesmo com calor para dar algum sinal de boa vontade [risos]. E também porque não sei o que vai acontecer neste inverno. Há o El Niño, nunca se sabe o que vai acontecer com o clima.

Como lhe aparece a frase? Em vigília, quando está a dormir?

Houve uma altura em que era mesmo a adormecer. Como sou muito inativa – ainda por cima, com estes climas –, estou muito tempo parada, no vago, e a frase aparece assim, sobre um momento vazio e é aquela. E fica à espera de ser escrita para aparecer a outra seguinte.

Depois não a larga?

Não me larga, e às tantas penso ‘bem, isto vai resultar mal, porque eu estou a ser muito ingrata’. E ela vai-se embora e leva o livro todo com ela atrás [risos].

Se vivesse nas ilhas britânicas, tinha uma vasta obra…

[pausa] Quando lá estou, não é assim. É uma coisa extraordinária.

Quando foi à Escócia, já ia no encalço da Lillias Fraser [personagem do romance homónimo, de 2001]?

Não. Fui à Escócia em peregrinação, muito antes. Tenho um antepassado escocês e circula sempre esse culto da Escócia na minha família materna. Fui a casa, digamos. Estava a escrever outra coisa quando me apareceu aquela menina, e dessa vez não foi sequer numa frase. Foi mesmo visual: uma menina a fugir de um campo de batalha, num lugar que eu tinha visitado. Quando ela me apareceu não fiz investigação, eu já a tinha feito pelo prazer de investigar. É uma coisa que gosto muito de fazer, onde tenho alguma energia, realmente.

Mas havia a maneira de falar da época, que teve de reproduzir. Nesse caso, não precisou de investigar?

Não sei responder… Não escrevo por decisão. E vem daí também a minha noção de que não tenho mérito, porque não é um trabalho. Sei como se faz um texto pré-programado, um texto académico, um ensaio. Vou investigar, procurar bibliografia, vou organizá-lo por determinado método, e depois tenho os apontamentos à volta e utilizo-os. Os meus textos literários não têm nada a ver com esse método. E fico muito espantada quando oiço alguém dizer que queria fazer algo com determinado assunto e que precisa de uma determinada personagem para o fazer. Mas são grandes livros. Não advogo nada a ausência de projeto e de pesquisa.

Quando escreveu Adoecer [de 2010], por exemplo, não precisou de pesquisar sobre os pré-rafaelitas?

Não [risos]. É exatamente a mesma coisa. O meu namorado e eu já andávamos atrás deles há muito tempo. Normalmente as nossas viagens são sempre assim, a pôr o pé onde eles puseram. O Gabriel [Dante Gabriel Rossetti] e a Lizzie [Elizabeth Siddal] já andavam connosco há muito tempo. Cheguei à conclusão de que a Elizabeth Siddal, em todos os livros que tinha lido sobre ela, era uma personagem sempre mal interpretada. E prometi escrever um livro sobre ela. Disse ‘eu é que te entendo’. Quando fiz essa promessa, já conhecia praticamente tudo o que está no livro sobre os pré-rafaelitas. Ainda fizemos alguma pesquisa adicional, e depois de o livro ser publicado continuámos a andar atrás deles.

Manteve o entusiasmo por eles, mesmo depois?

Mais do que os livros que li o grande fascínio são os sítios. E até passámos desconforto para lá estarmos, o que não faz mal nenhum, porque não gosto de conforto para estar no sítio onde alguém esteve.

Por exemplo?

Uma das últimas experiências foi ficar num dos College de Oxford que creio que é o mais antigo, o Balliol, onde o Swinburne [Algernon Swinburne] estudou e onde teve um comportamento tremendo e só não foi expulso porque o Shelley tinha sido expulso antes do University College. Os académicos não quiseram fazer um segundo mártir. Claro, as paredes não são as mesmas, mas o sítio é o mesmo. Eles já fizeram muitas residências modernas para os alunos, fora do College, e alugam muitos dos Colleges a quem quiser ficar. Tratei de alugar um quarto no Balliol e a senhora, muito amável como eles são sempre, escreveu-me muito contente a dizer que eu ia ficar numa residence nova, confortável… E eu disse que não era nada daquilo que eu queria, se era para ir para uma residence que não fosse o edifício velho, então não ia. E ela disse que os quartos estavam a ser restaurados e eram muito desconfortáveis, com tudo a cair em cima da cama. E eu disse ‘é isso mesmo’ [risos].

Como planeia as viagens? Segue as rotas dos livros? Vê na internet?

A net é um mecanismo extraordinário, com um bocadinho de paciência e de saber. Porque a primeira camada é a camada do turismo e depois é preciso saber descobrir os caminhos mais ocultos para chegar a estes locais com memória intensa. O Shelley e o Byron levaram-nos para Itália. Falta a Suíça, que é muito cara [risos].

Isso limita-a à Europa. Ou já seguiu outras personagens a outros continentes?

Não. Fico de muito boa vontade na Europa.

Nunca fariam o itinerário do Huckleberry Finn pelos EUA, por exemplo?

Não. Nunca sairei da Europa atrás de ninguém. Porque o meu amor por outros autores não determina que eu queira estar o mais possível dentro da vida deles. Um grande autor da minha vida é, por exemplo, o Faulkner, mas também aquelas escritoras maravilhosas do Sul dos EUA. Nunca me passou minimamente pela cabeça ir atrás deles. Essa gente existe nos livros.

E incluem nas viagens os autores da Antiguidade Clássica?

Esse trajeto é mais difícil, mas fazemos. Estivemos na caverna onde o Eurípides se refugiou e onde escreveu algumas peças, e que é completamente inacessível. É uma aventura daquelas…

Na Grécia?

Em Salamina, perto de Atenas. Mas é num sítio impensável. Fomos sozinhos. Não fazemos nada com guias. Não há intermediários nestas coisas. Era um caminho muito difícil, e os gregos, claro, com a sua sabedoria, desaparecem todos à hora da sesta. E não havia ninguém a quem perguntar nada. Finalmente descobrimos uma espécie de cafezinho aberto onde estava um senhor a dormir a sesta, mas numa cadeira. O senhor lá nos indicou uma vereda para subir e teve tal compaixão por nós que pedimos uma garrafa de água e ele ofereceu-a. Com um ar absolutamente consternado, como quem u diz ‘coitadinhos, vão morrer’ [risos]. E foi uma coisa muito violenta, subir, subir, sem a mínima indicação de que existia.

Mas chegaram e tiveram o prémio de conseguir.

Abaixo havia um santuário dedicado ao Eurípides e isso já nos deu uma pista.

E leram sinais em grego?

Não havia sinais nenhuns. Até porque eles são – e os irlandeses também – muito avarentos dos seus segredos, dos seus lugares. Eles convivem, claro, com o turismo porque é a fonte de proventos. Mas não são pessoas abertas, como os ingleses, não são ansiosos por mostrar as suas coisas. Há aquelas coisas que estão à vista e depois há as outras. Os escoceses, por exemplo, têm uma ponte famosíssima, uma ponte das fadas. E as pessoas querem ir vê-la, por causa da tradição, do mundo feérico, etc. mas fizeram uma ponte falsa para mostrarem a quem quer ver [risos]. Mas não é a verdadeira. Essa eles guardam para eles.

Não perderam a noção de sagrado de alguns sítios.

Sim. Mesmo a nível de terreno. Passámos uma vez por trás de um monte muito importante na vida do Yeats. É público, é uma montanha como a Serra de Sintra, a parte da frente é virada para uma cidadezinha, Sligo. Íamos num carro com amigos, aquilo é assustador, o caminho está cheio de proibições, ‘estão a invadir propriedade, parem já, vão-se arrepender’ [risos]. O nosso amigo dizia que era uma estrada pública e que eles punham os sinais para dissuadir. Fizemos a volta toda, que é magnífica, mas a maior parte das pessoas não a faz, porque assusta-se. Isto é selvagem, no bom sentido termo. É claro que eles depois não fazem mal a ninguém. Há ali um mundo secreto, muito fascinante.

Esse fascínio por esses mundos já lhe vem de criança? Tinha alguém que lhe contasse histórias?

A minha mãe tinha de me contar histórias para eu comer. E aí entravam as histórias tradicionais, da Gata Borralheira e da Branca de Neve, que ela tinha de transformar em histórias de gatos. Depois o meu pai dava ordem de que ninguém, ao pé de mim, podia contar histórias que fizessem medo. Ora, as histórias da província faziam medo. E quando eu já tinha alguma consciência, chegava uma amiga da minha mãe, contava qualquer coisa e a minha mãe fazia sinal para que parassem. E toda a gente se calava, atrapalhada, até eu desaparecer. E eu enfiava-me, sem me verem, debaixo da mesa de camilha para ouvir as histórias, que eram muito mais apetitosas por serem proibidas. Depois, sempre que podia, ia passar tempo em casa da minha família paterna, dos meus tios camponeses. Era tudo diferente da minha casa, cultural, linguística e gastronomicamente. E aí sim, era o serão do campo, à luz do candeeiro a petróleo, sem iluminação nas ruas. E não havia o ‘era uma vez’, eram sempre histórias de terror, mas como se fossem vividas pelas pessoas. Eram histórias de bruxas, de possessos, de cães diabos.

Lembra-se de algumas?

Em Mafra havia, por exemplo, as minas de água, relacionadas com o convento, canalizadas a partir de nascentes, e tinham umas portinhas para entrar, como um aqueduto, e isso era uma fonte de inspiração de miúdos que contavam que tinham lá entrado e que tinham visto isto e aqueloutro… Puros Harry Potters avant la lettre. Eu só tinha uma diferença em relação a estas crianças, tinha duas culturas, uma urbana, dos meus pais, e a rural, que não se complementavam.

Isso não a baralhou?

Não, porque eu chegava a casa e falava logo. Sempre tive uns pais muito dialogantes. E o meu pai dedicou parte da vida dele a desfazer mitos. Porque mesmo na vila, as pessoas menos letradas tinham muitos medos. Havia uma lenda antiga de que a minha casa, que era uma casa enorme, era assombrada. Gostava muito era da vida da aldeia e tive um desgosto imenso quando chegou lá a eletricidade e acabaram o petróleo, as velinhas, e as lamparinas toda a noite acesas. Mas havia um terror latente. Havia medo do desconhecido, e o desconhecido entrava nas casas.

Isso teve influência na sua vontade de escrever?

Não. Nunca se me puseram questões para que eu pudesse decidir. Comecei a escrever historinhas muito cedo, assim que aprendi, aos quatro anos. Era uma coisa natural. E até a escolha do meu curso… Ninguém tinha dúvidas de que seria letras, embora fosse muito boa aluna a ciências também. Portanto, o curso nunca foi discutido. Nem profissionalmente tomei decisão, porque a minha única profissão possível era ser professora. Era uma imagem muito bela que eu tinha desde pequenina, a imagem da professora. Também não foi uma decisão, foi uma coisa natural. Nunca decidi nada na minha vida. 

ricardo.nabais@sol.pt