Praxes sem controlo

Ana nunca conseguiu contar à família a praxe a que foi sujeita numa universidade pública de Lisboa. Nessa tarde, depois de vários dias de cânticos, batalhas e “brincadeiras inofensivas”, a estudante de Letras foi levada juntamente com outros caloiros para um café ao pé da universidade. Aí, foi conduzida a uma sala escura, apenas iluminada…

“Eu ia a tremer, porque percebi que o que se passava era grave”, conta ao SOL. Lá dentro, os veteranos obrigavam raparigas e rapazes a simular atos de sexo oral, usando um pénis de louça onde colocavam iogurte. Cada caloiro era fotografado a cumprir a praxe pelos veteranos, que ficavam com uma prova da sua ‘entrada’ no curso.

Ana recusou cumprir o ritual. “Disse-lhes que não queria, que era ofensivo”. O dux e os restantes membros do conselho de praxes avisaram-na logo: se não aderisse, não seria aceite no curso, não poderia usar o traje académico, nem seria convidada para os jantares.

A estudante de 19 anos acabou por ceder, com medo de passar três anos a ser posta de lado. “Tenho muita vergonha de não me ter imposto porque sei que estas práticas continuam a repetir-se”, diz.

Também não denunciou o caso, nem à associação de estudantes nem à reitoria da Universidade: “Achei que seria marginalizada”. E mesmo tendo cumprido o ritual e guardado silêncio, o facto de ter questionado as praxes valeu-lhe os olhares de lado de veteranos e colegas de curso.

Estudantes e professores admitem que este tipo de praxes com recurso a jogos sexuais está a aumentar.

Isto ao mesmo tempo que continuam a ser praticadas praxes de alto risco, como a que foi realizada no Algarve, há uma semana, em que uma caloira de 19 anos, do curso de Biologia, foi internada em coma alcoólico depois de ser enterrada à beira mar na areia da praia de Faro e obrigada a ingerir várias bebidas. O caso está a ser investigado pelo Ministério Público, que de imediato abriu um inquérito.

‘Ultrapassaram-se os limites’, avisa diretor da Nova

As praxes praticadas este ano, incluindo a realização de rituais onde os alunos são obrigados a simular relações sexuais e a cantar cantigas obscenas, levaram mesmo o diretor da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova a enviar um e-mail a todos os estudantes, há duas semanas.

“Multiplicaram-se atividades que ultrapassaram os limites do civismo e do bom gosto”, lê-se na mensagem, onde João Costa aconselha os caloiros a “ignorar aqueles que acham que a Faculdade é um espaço para humilhação”.

Foi o próprio diretor e outros professores que detetaram estas práticas na faculdade, mas João Costa não abriu qualquer inquérito ao ocorrido. O diretor justificou ao SOL que preferiu adotar uma atitude “menos repressiva e mais pedagógica”: “Tomei uma posição de imediato fazendo-lhes ver que rejeitava essas práticas”, diz.

Na faculdade, as praxes só estão autorizadas um dia por ano, mas o responsável tem conhecimento de que os rituais se prolongam durante vários dias fora do estabelecimento. Explica, contudo, que “a faculdade só pode atuar disciplinarmente se estes estudantes exercerem as suas ações no interior da faculdade”.

Nos últimos quatro anos, nenhum aluno da sua faculdade foi punido por praxes agressivas. Também nenhum aluno apresentou queixa, nem foi aberto qualquer inquérito.

Simular atos sexuais

Catarina, de 19 anos, nunca pensou em denunciar os rituais sexuais a que são sujeitos os caloiros do seu curso de Economia numa faculdade pública. “Tive vergonha e medo de represálias”, admite a estudante, que juntamente com uma amiga decidiu aderir às praxes depois de um grupo de veteranos ter explicado que os rituais “eram brincadeiras giras, para conhecer a faculdade e os colegas”.

 No jardim, ao lado da universidade, juntamente com dezenas de caloiros, Catarina foi pressionada a saltar para a cintura de um estudante. “Ele simulava o ato sexual com pulos e eu tinha de dizer alto: ai, ai, ai”. Quando recusou, os veteranos deram-lhe uma alternativa: “Deitar-me no chão e fazer dezenas de flexões”. Para não ser mais humilhada, cedeu e fez a praxe.

Nesse dia, acabaria por desmaiar em plena rua, depois de ser obrigada a ficar estática, ao sol, durante largos minutos. “Senti-me mal e caí para o lado. Nessa altura, mandaram-me para casa”, recorda, salientando que não ingere álcool, mas que em grande parte destas atividades os alunos são incentivados a consumir e as caloiras acabam embriagadas no chão.

Catarina deixou a faculdade no início do verão: “Não gostei de nada, das praxes e do ambiente”. Recomeçou as aulas noutra instituição, mas não repetiu o “erro” de participar na receção ao caloiro.

Investigadora defende proibição

Apesar do reforço das medidas de controlo e alerta aos alunos por parte das universidades após a morte no Meco de seis jovens da comissão de praxes da Lusófona, em 2013, estas práticas não diminuíram, garante Catarina Martins, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Catarina Martins. “São cada vez mais intensas, com grande consumo de álcool, o que aumenta a agressividade das práticas e reduz a capacidade dos caloiros dizerem não”, defende.

A investigadora do Centro de Estudos Sociais confirma que também em Coimbra há cada vez mais praxes de cariz sexual. “Muitos casos são de verdadeira agressão sexual”, diz a investigadora, recordando que há uma “regra de praxe não inscrita nos códigos” em que um caloiro não é verdadeiramente um estudante se não tiver relações sexuais com outro até à queima das fitas, que se celebra em maio. “Há relatos de uma violação em grupo de uma estudante num jardim e de outros abusos. Simplesmente não são denunciados por vergonha e medo”, diz.

Para combater esta situação, Catarina Martins defende que as praxes sejam totalmente proibidas e passem a ser um crime público. Ou seja, que os casos não dependam da queixa das vítimas para serem investigados, podendo a denúncia ser feita por qualquer pessoa.

Mas para o presidente do Conselho de Reitores, António Cunha, a solução está nas mãos dos estudantes. “As universidades não podem ter um polícia atrás de cada estudante, nem ser responsabilizados pelo que se passa fora do recinto” – frisa António Cunha, que proibiu as praxes no campus da Universidade do Minho.

O mesmo defende o presidente da Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado, João Redondo: “As praxes violentas são casos de polícia e vão continuar a acontecer se os estudantes não se comprometerem em evitar estas situações”.

Já para o tenente coronel da GNR Rogério Copeto, “seria muito útil poder alargar às instituições de ensino superior o programa Escola Segura, que é aplicado nas escolas desde 1992”.

joana.f.costa@sol.pt