A Paula Calisto

Uma história que um dia me contou diz muito sobre a sua natureza. Ela participava num jantar de pessoas ligadas à moda que tinham ido assistir a um desfile no estrangeiro. Um dos homens presentes, empresário importante, virou-se para uma jornalista e disse-lhe desajeitadamente: «Tem uns brincos muito bonitos, mas devem ser falsos… ». E…

Conheci a Paula Calisto pouco depois do 25 de Abril, quando comecei a colaborar esporadicamente no Expresso. Durante muito tempo, porém, limitei-me a cumprimentá-la à distância. 

Era secretária de Francisco Pinto Balsemão, o diretor do jornal, e trabalhava numa sala ao fundo de um corredor do velho edifício da Rua Duque de Palmela, ao Marquês de Pombal. Nessa altura viviam-se no país tempos revolucionários, e os jornalistas eram quase todos de esquerda. Os do Expresso não fugiam à regra. Apesar de Balsemão ser fundador e militante do PPD, a redação era maioritariamente composta por esquerdistas, contando com um importante e aguerrido núcleo de jornalistas afetos ao MRPP.

Ora, a Paula destoava bastante do ambiente geral. Primeiro, era uma mulher num meio onde dominavam os homens. Depois, era loura e bonita (havia quem a achasse parecida com a Jane Fonda), o que contrastava com os cabeludos de barbas negras. E vestia-se com elegância, quando pontificavam os fraldisqueiros com calças de ganga. Finalmente, assumia-se como uma fervorosa apoiante de Francisco Sá Carneiro, num local onde os ídolos eram Marx e Mao Tsé-Tung. 

Além de secretariar Balsemão, a Paula escrevia artigos sobre moda para a Revista do Expresso. E com esse objetivo ia todos os anos a Paris cobrir a célebre semana da moda na capital francesa. 

Depois da saída de Balsemão para o Governo, em 1979, foi secretariando os diretores que lhe sucederam. Primeiro, Marcelo Rebelo de Sousa, depois Augusto de Carvalho e, finalmente, o autor desta crónica. 

Fui convidado para subdiretor do Expresso no princípio de 1983 – e seis meses depois subi (contrariado) a diretor. Ora, nessa altura, ‘herdei’ a Paula Calisto como secretária. Ela e a Lucília Santos. Convenhamos que era um excesso. Eu vinha de um ateliê de arquitetura onde havia uma secretária para oito arquitetos – e ter de repente duas só para mim representava um luxo só possível naqueles tempos loucos. 

É certo que a Paula não trabalhava a tempo inteiro mas em part-time. Como dava aulas de inglês na Escola de Hotelaria de Lisboa, só ia para o Expresso à tarde. Chegava depois do almoço com ar esbaforido, atirava invariavelmente o telefone ao chão depois de tropeçar no fio e declarava-se «estafada». A Paula tinha, aliás, um diálogo particular com o telefone, pois fazia uma coisa que nunca vi mais ninguém fazer: enrolava de tal modo o fio helicoidal que ligava o aparelho ao auscultador que ele ficava todo às tranças. 

 

Na sua ânsia de fazer tudo a correr – andava muito depressa, falava muito depressa, trabalhava muito depressa -, a Paula cometia às vezes lapsos inesperados. 

Certa vez, fui entrevistar Cavaco Silva, então primeiro-ministro, e – como sempre acontecia -, depois de o texto ser passado do gravador para o papel fiz à mão as correções necessárias, entregando-as a seguir à Paula para as meter no computador (nessa época já havia computadores).

Ficámos toda a noite a trabalhar naquilo, pois era uma tarefa demorada – eu a fazer as emendas e a Paula a metê-las no texto computorizado – e de manhã demos o trabalho por concluído. Eis senão quando, ao carregar na última tecla, ouço a Paula exclamar: «Ai meu Deus!». Ainda perguntei o que tinha acontecido, mas a pergunta era evidentemente desnecessária: perdera-se o trabalho todo. Tivemos de recomeçar tudo quase do zero. E eram para aí 60 folhas datilografadas…

Quando só conhecia a Paula à distância, confesso que ela me atemorizava um pouco. Por estar sempre com pressa, por andar invariavelmente bem vestida e bem penteada, pelo ar um pouco de ‘tia de Cascais’.

Mas depois de começar a trabalhar com ela, conheci outra pessoa. 

Primeiro, era de uma lealdade a toda a prova. Nessa época, o Expresso era palco de constantes intrigas de corredores – facilitadas pela estrutura labiríntica do edifício – mas ela mantinha-se completamente impermeável ao diz-se, diz-se. Depois, era genuína, espontânea e dizia sempre o que lhe ia na alma. Tinha o coração ao pé da boca. Batia-se como uma leoa pelos seus amigos. Aquando dos ‘casos’ que envolveram Rocha Vieira depois de sair de Macau, defendia-o com unhas e dentes sempre que um jornalista levantava dúvidas. «O Vasco», como lhe chamava, era intocável. Nem queria saber das razões por que o criticavam. Bastava-lhe a amizade. 

Encarando o homem, a Paula retorquiu: «Por acaso sei que aqueles são verdadeiros… Os meus é que são falsos!». O fulano ficou de cara à banda e não voltou a falar até ao fim do jantar. 

A Paula casou jovem, com o advogado Jorge Calisto, com o qual teve dois filhos: o Jorge e a Marta. Até pela sua natureza conservadora, sempre pensei que era um casamento para a vida. Surpreendeu-me, porém, um dia, ao confessar-me que se ia separar. E bastante tempo depois disse-me que me queria fazer uma surpresa – e apareceu à noite no meu gabinete (nós trabalhávamos com frequência depois do jantar) com uma pessoa que me queria apresentar. Qual não é o meu espanto quando vejo entrar um colega meu arquiteto, o Alberto Oliveira, que fora meu contemporâneo na Escola de Belas-Artes e trabalhara na Câmara de Lisboa com o meu irmão mais velho. Era o seu novo companheiro.

A vida está cheia de coincidências! 

Pouco depois de eu deixar o Expresso, a Paula também saiu. E começou a trabalhar no SOL como colaboradora, assinando uma coluna que fez época: as Famílias Numerosas. Depois o destino afastou-nos, mas continuou a visitar-nos no edifício do SOL na Rua de S. Nicolau, ao Chiado, onde estavam muitos dos seus amigos. 

A última vez que falei com ela foi há um ano, quando me ligou a dar os sentimentos pela morte da minha mãe. Nessa ocasião, depois de ouvir pacientemente as minhas explicações sobre o sucedido, já no final do telefonema pediu-me desculpa por não ter ido ao funeral e explicou: «Sabe, eu também tenho um problema. Diagnosticaram-me um cancro no pâncreas». Fiquei sem saber o que dizer. Balbuciei certamente umas palavras desajeitadas. 

Na quarta-feira da semana passada, o Alberto Oliveira enviou-me o seguinte sms: «Caro José António: a Paula deixou-nos às primeiras horas da madrugada. Fico com um grande silêncio à minha volta». 

Na última despedida, todos puderam sentir esse silêncio. 

jas@sol.pt