Presidente do Supremo alerta para perigo de privatização da justiça

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) alertou hoje para o perigo de se caminhar “para a privatização da justiça, que quer realizar a utopia neoliberal de dispensar o juiz, ficando os tribunais da República numa função residual”.

Presidente do Supremo alerta para perigo de privatização da justiça

Na sessão solene de abertura do Ano Judicial, o presidente do STJ, António Henriques Gaspar disse que, "sem nos darmos conta, (…) assistimos a ruturas silenciosas, que são alterações radicais, reveladas na criação paulatina e subreptícia de múltiplas instâncias de jurisdição material fora dos tribunais (…), [e] somos confrontados [por] várias fontes, por insistente indução ideológica à fuga do contencioso, para formas de justiça privada".

Nestas circunstâncias, em que os tribunais correm o risco de ficar cada vez mais limitados a uma função residual, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) entende que "os riscos da perda de identidade e fragmentação da justiça estão muito presentes".

Em sua opinião, "não pode constituir função de Estado promover a escolha de formas privadas de justiça e nem sempre são compreendidos os critérios e a tendência para a instituição de tribunais arbitrais necessários a que se aplica, por regra, o regime da arbitragem voluntária", pelo que deve ser assegurada, a começar na lei, "a intervenção razoável dos tribunais do Estado".

O presidente do STJ observou que, nos tempos mais recentes, outras formas vêm ocupando o espaço dos tribunais, sob o "manto do exercício de uma atividade administrativa", referindo-se ao "grande contencioso económico e financeiro, entregue à competência de diversas regulações", naquilo que considera ser "uma confusão de papéis", com o "risco de questionamento da legitimidade constitucional".

Criticou o facto de as infrações às obrigações e deveres dos grandes interesses da finança e da economia (numa alusão à banca) terem sido entregues ao direito das contraordenações (multas e coimas), que embora possam atingir "valores elevadíssimos" ficam "materialmente subtraídas" do direito penal.

"O legislador parece não querer o direito penal a interferir nestas matérias, não criando tipos legais para enquadrar e responder a situações reveladas nas crises no seu esplendor de devastação", frisou.

Henriques Gaspar falou também das adversidades na aplicação do novo mapa judiciário e lamentou que a nova organização judiciária não tenha sido acompanhada da "adaptação e modernização" do Estatuto dos magistrados, que tem 30 anos.

"A oportunidade foi perdida sem glória, desvalorizando o trabalho dedicado, tanto do Conselho Superior da Magistratura, como de muitos magistrados. Não foi positivo para a justiça o naufrágio do Estatuto no fim da viagem e os juízes não compreendem as razões deste acidente", sublinhou.

Henriques Gaspar defendeu ainda que seja reformulada a estrutura do tribunal de competência territorial, alargada da Concorrência e Regulação, e propôs que as vias de recurso tenham outra "hierarquia, abertura e conceção".

A carência de oficiais de justiça, a garantia de acesso ao direito em questões de família e menores, o problema resultante da concentração das secções centrais de execução e comércio e a reponderação de algumas competências territoriais de instâncias centrais de instrução criminal foram apontados como sendo os pontos mais problemáticos detetados com a nova organização dos tribunais.

Lusa/SOL