Teresa Lago: ‘A mulher constrói para o conjunto, o homem para a sua carreira’

A astrónoma foi eleita secretária-geral da União Astronómica Internacional e vai dirigi-la a partir de 2018. Mas Teresa Lago tem um percurso de fôlego na ciência portuguesa – preparou a proposta de associação de Portugal ao Observatório Europeu do Sul nos anos 90 e presidiu à Sociedade Porto Capital Europeia da Cultura em 2001. Uma…

Quando iniciou a carreira, fazia ideia de que hoje estaríamos a falar de telescópios de 30 m de diâmetro?

Quando comecei, em Portugal a astronomia era inexistente. Fiz um percurso estranho, porque comecei com um bacharelato em Matemática, e depois no 3.º ano tive uma disciplina de Astronomia. Foi aí que fiquei fascinada. Decidi que ia mudar de curso, fui fazer a licenciatura em Engenharia Geográfica porque podia ter mais duas disciplinas de Astronomia. E era a única licenciatura que as tinha. Terminada essa fase de formação universitária, decidi que ia a Inglaterra fazer o mestrado e o doutoramento para me especializar. Nessa altura, pensar que podíamos ser membros do Observatório Europeu do Sul (ESO) ou ter acesso ao que são os melhores telescópios do mundo era algo impossível.

Não tinha a astronomia como um sonho de criança?

Eu tinha astronautas quando era pequena, e lembro-me de ter aviões.

Era invulgar…

Era a fase do início da conquista do espaço. Mas ainda há não muito tempo fui descobrir um enorme avião que tinha, equipado com umas luzes, umas coisas completamente bacocas, mas para mim aquilo era interessante. Mas, realmente, não foi isso que me fez ir para a Astronomia, foi a componente de puzzle que envolve. Qualquer área da ciência a tem, mas na astronomia a dimensão é maior, mais apelativa e mais transversal, envolve a físico-química, a matemática, a computação…

Quando começou a fazer observações?

Ainda em Inglaterra. Os ingleses tinham, naquela altura, um telescópio de grande dimensão, com quatro metros de diâmetro… Depois, mudaram-no para as Canárias e era aí que eu ia fazer grande parte das observações, já depois de ter regressado. Usei também satélites da Agência Espacial Europeia (ESA), porque o observatório era em Madrid, e aí podia ir facilmente. Era eu que pagava as minhas viagens nessa altura [risos]. Só fui ao Chile bastante mais tarde, quando já éramos membros do ESO.

Foi uma boa sensação, a de ir ao Chile ver os maiores telescópios do mundo? Para mais, esteve diretamente envolvida na adesão de Portugal ao ESO.

Foi. O próprio observatório é, como realização humana, qualquer coisa de fabuloso. Fica num sítio completamente inóspito, mas é lindíssimo. É impressionante como é possível montar, num sítio tão isolado, e fazer funcionar máquinas extremamente exigentes do ponto de vista tecnológico. Só de facto uma grande organização como o ESO o consegue.

As populações à volta colaboram?

Sim. O espaço físico onde os vários observatórios estão instalados foi cedido ou vendido pelo governo do Chile ao ESO. O maior problema não era a parte da iluminação pública, era a parte da iluminação das minas. O deserto do Atacama tem uma exploração mineira intensa. Aí há um envolvimento do governo do Chile também para proteger os locais dos observatórios.

Quais são os telescópios mais impressionantes?

O Very Large Telescope (VLT) ficou concluído em 2001. São quatro telescópios iguais, com mais de dez metros de diâmetro e podem funcionar isoladamente. Podemos apontar cada um deles para objetos diferentes. E podemos também, com quatro equipas diferentes, apontar os quatro para o mesmo sítio e depois combinar a radiação obtida porque isso dá o equivalente a um telescópio de 60 metros de dimensão. Mas, neste momento, já estamos na terceira geração de instrumentos. Entretanto, arrancou o ALMA, que é um projeto tão grande e tão difícil do ponto de vista tecnológico e de custos, que é mundial. O ESO, os EUA e o Canadá, o Japão, a China e a Coreia do Sul juntaram-se porque só assim era possível desenvolver aquele conjunto de instrumentos. Ficou pronto em 2013 e entretanto já está em construção um projeto que é só do ESO, o chamado European Extremely Large Telescope (EELT), que terá cerca de 30 m e está neste momento a preparar-se uma montanha para o receber. Naquela região as montanhas são cónicas, portanto é preciso cortar um bocadinho para ter uma base mínima para instalar só o telescópio. Lá em cima não há mais nada.

Uma das coisas que os leigos não sabem é que um astrónomo hoje não é aquela figura romântica que está a observar os astros diretamente ao telescópio…

Não. Hoje, se tiver sorte, vai ver o telescópio [risos]. O telescópio tem uma equipa de técnicos, essencialmente ao comando, e o astrónomo está noutro edifício, tem um monitor de televisão, tem de preparar a sequência de exposições, etc., e estar a receber os dados. E pode comunicar com os técnicos se quiser fazer alterações. É uma época diferente.

Também era assim quando começou?

Quando comecei a fazer observações, ainda estava fisicamente no observatório. E como era muito frio, porque começava a preparar o telescópio às quatro da tarde – e fazia as observações entre dezembro e fevereiro -, às sete horas podia abri-lo e estava até às seis da manhã. O frio era tanto que tínhamos uns fatos ligados à eletricidade para se manterem quentes e a única coisa que tínhamos de fora era as mãos, porque precisávamos delas para controlar o telescópio. Agora isso já não acontece. É uma astronomia cómoda [risos].

Quando vê esta evolução, consegue ainda lembrar-se do que se sabia sobre o cosmo em 1980, quando começou?

Consigo perfeitamente. Fiz o meu mestrado em 1975 e concluí o doutoramento em 1979. A minha área de trabalho era sobre as primeiras fases da evolução de um certo tipo de estrelas. Menos de um ano depois eu própria tinha observações que questionavam os resultados que tinha obtido na minha tese. A investigação é assim. E isso aconteceu porque entretanto houve uma nova janela de observação que se abriu, que foi o satélite de ultravioletas da ESA, que fui das primeiras a usar. E quando fomos observar encontrámos, naturalmente, coisas diferentes, extremamente interessantes. Agora com o ALMA aconteceu o mesmo. As novidades são quase diárias.

Vai, entretanto, dirigir a União Astronómica Internacional (UAI). Não é a primeira mulher, mas é a primeira portuguesa.

A UAI envolve 96 países e cerca de 12 mil membros. São astrónomos profissionais ou associações de astrónomos. Funciona de uma maneira muito interessante: tem os chamados quatro officers, que são o grupo de pessoas que entre as assembleias gerais – que funcionam de três em três anos – implementam aquilo que foi decidido e gerem a organização. Para garantir continuidade, porque a UAI está quase a fazer 100 anos, o secretário-geral, por exemplo, começa como adjunto e faz um triénio. Coopera com o secretário-geral da altura e depois sucede-lhe no cargo. Com o presidente acontece o mesmo. Fui eleita secretária-geral adjunta, o que significa que neste primeiro triénio tenho dois ou três pelouros, mas além disso coadjuvo o secretário-geral e serei secretária-geral no triénio 2018-2021. Acabados esses seis anos, a pessoa fica mais três como conselheira.

Para garantir uma transição suave.

E é assim que uma organização funciona muito bem, com uma certa coerência. A UAI tem a sede em Paris e representantes em todos os países que são membros. É uma organização a uma escala muito diferente daquela a que eu estava habituada.

Não a assusta esse desafio, pela dimensão que tem?

Gosto muito de desafios e sempre tive muita curiosidade. E a minha curiosidade aqui é sobre essa escala global. Principalmente porque a UAI, neste momento, está numa fase extremamente interessante. A assembleia-geral que tivemos em Honolulu, no Havai, onde eu fui eleita, foi a que teve a maior participação de sempre. Foram mais de três mil astrónomos de todo o mundo reunidos durante duas semanas. A UAI está agora a implementar, pela primeira vez, um plano estratégico a dez anos. É a Astronomia para o Desenvolvimento, ou seja, fomentar a Astronomia como instrumento para os países em desenvolvimento, quer pelo tipo de conhecimentos que envolve, de formação que exige, quer por ser muito atrativa para os jovens.

São projetos de educação para a ciência nesses países?

Esta estratégia envolve educação em três grupos, focados nas escolas primárias, no ensino médio e outro no ensino universitário. O mais interessante para mim é que este plano tem como sede a África do Sul, na Cidade do Cabo. Começou a funcionar há dois anos e tão bem que já temos várias delegações regionais, uma na América Central e América do Sul – na Colômbia -, outra na África Ocidental, na Nigéria, outro na África Oriental, na Etiópia e ainda outra na Ásia do Sul, na Tailândia. Temos também uma no Japão, outra na China e ainda uma outra que vai ser aberta no dia 15 na Arménia. E para novembro, talvez, vai ser oficializada a abertura de uma delegação na Jordânia, que envolve os países árabes. É uma época muito interessante. Não é só o escritório em Paris, é um mapa-mundo.

A certo ponto do seu trajeto foi ainda presidente da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura. Como foi a experiência?

Quando criaram a sociedade, criaram também um conselho consultivo, que tinha pessoas de várias áreas. Duas ou três eram de áreas da ciência. Eu estava nesse conselho, tinha aceitado o convite do presidente da câmara. Depois houve toda aquela turbulência a partir de julho ou agosto – a sociedade tinha sido criada em janeiro de 1999 – e em novembro foram-me bater à porta. E eu disse ‘de modo nenhum’ [risos]. Eu era diretora do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto, tinha cursos, mestrados, doutoramentos, etc. Mas insistiram muito, era um projeto importante para a cidade e eu aceitei. Como era uma batata muito quente, tinham de arranjar uma mulher para ficar com ela [risos].

Foi um processo conturbado.

Foi muito difícil. Não deixei de dar aulas, mas deixei de fazer todas as outras atividades universitárias. Dava três horas por semana porque precisava de normalizar. Quando cheguei, a programação não estava feita, os apoios financeiros não existiam, a Casa da Música ainda nem tinha anteprojeto. E estávamos em novembro de 1999… O que fiz foi pegar no projeto como pego num problema de astronomia complicado. Foram muitas horas de trabalho a tentar perceber o que se passava e o que faltava fazer. Acho que correu muito bem, mesmo com uma carga política elevadíssima.

E como lidou com isso, vinda da ciência?

De uma maneira muito pragmática. Disse muitas vezes que estava ali enquanto os acionistas entendessem que devia estar. Quando não me quisessem que me pusessem na rua. Estive lá com muita serenidade. Foi muito interessante, porque foi a primeira vez que eu saí da ciência para fazer outra coisa. Mas acho que marcou a vida que o Porto tem hoje.

Acha que o governo do país ficava mais bem entregue a um cientista?

Vou dizer uma coisa terrível [risos]. Acho que ficava mais bem entregue a uma mulher. Obviamente que os homens e as mulheres são muito diferentes e são complementares sob todos os pontos de vista. Mas há uma coisa que a experiência me ensina, e em que ambos são fundamentalmente diferentes: uma mulher é capaz de construir para o conjunto, um homem constrói para a sua carreira. Não acho que esta ideia seja um sofisma ou feminismo.

E aplica-se também ao meio científico?

Completamente. A mulher é muito mais capaz de arranjar condições para que a investigação seja feita e para que haja equipas. Um homem pensa essencialmente nas pessoas que deve juntar à sua equipa para a sua carreira pessoal.

Há a ideia de que os astrónomos são pessoas isoladas, sem grande contacto com o mundo. É verdade?

A tendência é que o investigador trabalhe em equipas pequenas e depois comunique essencialmente com os seus pares. Os astrónomos conhecem-se todos, ou de nome, ou pessoalmente, apesar de serem 12 mil. Mas é um mundo pequeno. Por isso, os astrónomos têm a tendência, de facto, quando se sentam, de só falarem de astronomia. Mas somos pessoas como as outras [risos].

Quando descem à terra, quando vão por exemplo às compras, não lhes parece incrivelmente comezinho?

A astronomia dá-me uma certa serenidade, precisamente por causa das grandes escalas de comprimento, de distância ou temporais. São tão excessivas, que para nós os grandes problemas aqui são mínimos. Por outro lado, dá-nos um sentimento de continuidade no universo – o material de que somos formados é o mesmo de que são formadas as estrelas. Esse sentimento e, ao mesmo tempo, a sensação de dimensão relativa dão-me serenidade.

Essa ideia de que somos apenas um ponto de passagem, que valemos menos de uma gota na História do universo não assusta, ao mesmo tempo?

Pois somos, mas temos uma vantagem: como o material é o mesmo, ele será reciclado [risos].

ricardo.nabais@sol.pt