Carta aberta a Passos Coelho

Senhor primeiro-ministro,

Cruzei-me consigo durante um dia de campanha no Minho, onde estava a fazer uma reportagem a convite do Diário de Notícias. E cruzei-me com os dois lados da sua personalidade: o reservado, tímido, contido, de discurso redondo, e a respetiva antítese feita de exuberância, afetividade e identificação emocional com os públicos a quem se dirigia, sobretudo no comício em Braga.

Confessei-me surpreendido com essa sua transfiguração que nunca havia observado diretamente e concluí que «o mistério principal da coligação – e que representa porventura o seu maior capital – é, efetivamente, Passos Coelho». Os resultados eleitorais, apesar da perda da maioria absoluta, confirmaram essa intuição. 

Que, num curto espaço de meses, uma derrota aparentemente inevitável se tenha transformado numa vitória contrária à lógica de uma experiência de austeridade nunca vivida tão duramente pelo país, constitui um fenómeno que me parece dever-se em larga medida ao seu talento de ator político. Um ator capaz de convencer muitos portugueses de que os sofrimentos passados poderiam transformar-se, magicamente, em benesses recuperadas por obra e graça desses sacrifícios.

A ideia transmitida inicialmente pelo seu Governo de que os portugueses tinham de pagar os custos de viver acima das suas possibilidades, essa ideia de castigo providencial contra a imprevidência e o despesismo, deu agora lugar a uma súbita e aparentemente genuína convicção quase social-democrata de que a prioridade futura é o combate às desigualdades e injustiças que foram crescendo na nossa sociedade. 

Rutura com o passado? Não exatamente, mas uma forma hábil de reescrever a história, justificando as dores passadas com as alegrias de amanhã. Como você acaba de dizer, «seria imperdoável que o país não estivesse em condições, agora, de tirar partido de todos os sacrifícios efetuados». 

Pegando nas suas palavras, seria de facto imperdoável que essa declaração – e tantas outras, do mesmo teor, que repetiu ao longo da campanha – fosse apenas um truque de ocasião logo esquecido para voltar ao mantra da política seguida nos últimos quatro anos. E digo-lhe isto não apenas por razões de coerência moral, mas também por motivos políticos verdadeiramente imperativos, se quiser manter a sua credibilidade e garantir a estabilidade governativa.

De facto, a única possibilidade de ultrapassar a próxima prova de fogo parlamentar e obter, pelo menos, a abstenção do PS para o programa do Governo e o Orçamento do Estado, é apresentar testemunhos inequívocos de que as suas palavras e compromissos não foram em vão. 

Estará você à altura deste desafio? Depois de tudo o que se passou, permita-me que lhe confesse o meu ceticismo. Já referi em várias ocasiões aquilo que me parecia ser a sua duplicidade de comportamento, o seu jogo de caras no género dr. Jekyll e mr. Hyde. Ainda há pouco fiquei chocado ao saber que você – que sempre se declarara agnóstico e até ateu – fez questão de exibir o terço que guardava no bolso como talismã de uma inesperada conversão. 

Quem tantas vezes insistiu em cultivar a sua privacidade, embora deixando-se trair por contradições pouco abonatórias (a propósito da doença da sua mulher, por exemplo), não fica nada bem na fotografia deste exibicionismo oportunista e que suscita sérias dúvidas sobre a autenticidade do seu comportamento. 

Faço-lhe uma confissão muito sincera. Para além de todas as dúvidas que mantenho – e você alimenta, aliás -, mentiria a mim mesmo se não lhe dissesse que há em si, na veemência com que por vezes parece querer traduzir convicções genuínas, algo que inspira empatia pessoal – e que julgo poder explicar, pelo menos em parte, o voto de confiança que uma parte dos portugueses lhe concederam.

Seria lamentável que, confirmando as suspeitas dos cínicos, você se limitasse a ser mais um entre eles, ou apenas uma versão sonsa do seu colega Paulo Portas. Está ainda por esclarecer o seu mistério e a sua dupla personalidade e é duvidoso que você próprio esteja em condições de fazê-lo. Mas agora faltam poucos dias para o momento da verdade: quem é, de facto, Pedro Passos Coelho?