Aforismos melancómicos

Mudou de bairro, mas manteve as mesmas obsessões. Passeia-se de quarteirão em quarteirão com sacos de plástico em cada mão, um caderno e uma caneta no bolso, anotando «aforismos de pastelaria». Observa os vizinhos sugando-lhes as vivências, não como vampiro sedento de fatalidades, mas antes de identificação sentimental. A ausência de cinco anos do pequeno…

A mudança traz consigo uma alteração geográfica. Campo de Ourique ficou para trás e é agora Campolide que povoa as observações desta figura «solitária e melancólica». Mas o bairro nem sempre é nomeado, porque a ‘redoma’ de Melancómico é, sobretudo, «um bairro mental». «O Melancómico sente-se protegido no bairro, gosta muito da afetividade que se cria em ambientes como a retrosaria, a pastelaria, a mercearia local… É esse espaço comunitário que o resguarda do mundo, ao passo que o lado imaginário torna a personagem transcendente. Dentro da solidão urbana em que vive, o Melancómico tenta encontrar um sentido de pertença, numa cidade que para ele é abstrata».

Apesar de possuir outras dimensões, Nuno Costa Santos não nega o lado biográfico da personagem e até veste sem excitação o chapéu alter ego. «É um heterónimo, uma espécie de Bernardo Soares do Lidl», comenta o autor, numa referência ao momento em que teve a ideia de criar o Melancómico. «Estava, há uns nove, dez anos, no Lidl de Xabregas, com sacos de plástico na mão, quando senti que aquela imagem tinha uma carga simbólica grande, muito entre o material e o existencial».

A par da melancolia e solidão óbvias, há nesta personagem um lado satírico inato, até porque Nuno Costa Santos gosta desse «humor que está misturado com tudo». «Veja-se um país como a Irlanda. Um dia estava no aeroporto e um tipo perguntou-me de onde era. Disse que era português e retribui com a mesma pergunta. Ele disse-me: ‘Sou da Irlanda, alguém tem de o ser’. Logo nesta abordagem está tudo o que considero interessante no humor. Em Portugal há divisões: ‘agora vamos ver graçolas’, ‘agora vamos rir’».

O cinema também é uma influência recorrente, com o autor a enumerar os trabalhos de Woody Allen, João César Monteiro ou Miguel Gomes como os «territórios» com os quais se identifica. Mas há mais. «O Melancómico é muito influenciado pelo Jacques Tati, pela figura do Playtime – Tempo de Diversão (1967)», diz, referindo-se à personagem de Sr. Hulot, um francês perdido na nova modernidade de Paris. «Também pica no Nani Moretti, numa Lisboa do Fernando Lopes, que me interessa muito, uma Lisboa que se calhar já não existe», continua.

E depois há a música. Depois de B Fachada no Canal Q, para esta reencarnação na RTP 3, Nuno Costa Santos convidou PZ para criar os ambientes sonoros dos episódios. «O PZ é uma descoberta recente. Também é uma personagem e acho que contém em si algumas das características do Melancómico. O lado bairrista, solitário e melancólico, mas com um ritmo dançante que me agrada».

A par da estreia de ontem na RTP 3, os episódios antigos de Melancómico, que passaram no Canal Q, vão ser lançados em DVD durante a próxima semana no FOLIO (Festival Literário Internacional de Óbidos), pela Escrit’orio Editora.

alexandra.ho@sol.pt