70 anos da ONU: nações unidas e polémicas

As linhas orientadoras das Nações Unidas parecem por vezes incompatíveis com as ações da organização. A manutenção da paz e da segurança e a promoção dos direitos humanos, plasmadas no papel, já esbarraram com aparentes incongruências e incompatibilidades – como um soldado da paz que abusa sexualmente daqueles que devia proteger, ou eleger um país,…

70 anos da ONU: nações unidas e polémicas

O passado nazi do secretário-geral

Por recomendação do Conselho de Segurança – cujos membros permanentes na época eram China, EUA, França, Reino Unido e URSS -, seguida de aprovação pela Assembleia-Geral, o austríaco Kurt Waldheim (1918-2007) tornou-se secretário-geral das Nações Unidas em 1972. Na altura, não tinham sido tornadas públicas as suspeitas do papel de Waldheim em atrocidades perpetradas nos Balcãs na II Guerra Mundial. Mas, como documentos confidenciais da CIA desclassificados em 2001 vieram a comprovar, tanto os serviços secretos norte-americanos como os britânicos já estavam a par das atividades de Waldheim no final da guerra.

Não tendo nunca sido provado que o próprio Waldheim tivesse cometido crimes de guerra, foi provado que mentiu: aos 24 anos, em 1942, o oficial estava destacado numa unidade especial nos Balcãs – apesar de ele ter afirmado que a carreira militar tinha terminado nesse ano, ao ser ferido na frente russa. As unidades que acompanhavam o exército regular – Wehrmacht – foram responsáveis por massacres de combatentes e civis na Jugoslávia, além de supervisionarem a deportação de judeus gregos para campos de extermínio.

As revelações só surgiriam na campanha presidencial de Waldheim, em 1986 – já ele tinha cumprido dois mandatos na ONU. Negando sempre, definiu-se como um cidadão anónimo de um país invadido, obrigado a juntar-se às fileiras militares do ocupante, e não como um cúmplice do III Reich. Os austríacos elegeram-no.

Decapitar não é incompatível com Direitos Humanos

Eleita para um dos 47 lugares do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no triénio 2014-2016, a Arábia Saudita foi mais recentemente notícia pela condenação à morte, por decapitação (e posterior crucificação em espaço público), de um rapaz de 21 anos. À data dos crimes – participar numa manifestação anti-regime -, o jovem tinha 17 anos. A execução da sentença está iminente e o reino já soma, este ano mais de 100 decapitações.

Ainda que outros membros deste Conselho apliquem a pena de morte (por exemplo, os EUA), o que à partida pareceria conflituar com a definição de Direitos Humanos, ao caso saudita acresce ainda que Riade não subscreve a Declaração Universal dos Direitos do Homem, documento inspirador de constituições e fundador das Nações Unidas.

A justiça saudita rege-se pela aplicação da lei islâmica, sharia, que o embaixador Abdallah al-Mouallimi na ONU crê ser “a forma mais elevada de direitos humanos”, como disse à BBC.

Na página da ONU, a organização descreve o Conselho de Direitos Humanos como o “sistema responsável por fortalecer a promoção e proteção dos direitos humanos em todo o mundo e para responder a situações de violações dos direitos humanos e elaborar recomendações sobre as mesmas”.

Presidente da Assembleia-Geral defende homofobia

A escolha unânime – era o único candidato de África, grupo geográfico que assumiria a presidência nesse ano – de Sam Kutesa para 69.º presidente da Assembleia-Geral valeu críticas às Nações Unidas. A eleição do então ministro dos Negócios Estrangeiros ugandês surgia em 2014 meses após o país africano ter aprovado uma lei que condena a prisão perpétua homossexuais ‘reincidentes’ e a cinco anos os ‘promotores’ da homossexualidade.

Não foram só petições da sociedade civil a exigir que Kutesa não tomasse posse na ONU. Kirsten Gillibrand, senadora democrata por Nova Iorque, foi direta: “Seria preocupante ver o ministro dos Negócios Estrangeiros de um país que aprovou uma lei injusta, dura e discriminatória baseada na orientação sexual presidir à AG da ONU”.

Kutesa refutou ser homofóbico – e nunca se colocou ao nível do PR do Uganda, para quem os gays são “nojentos” -, defendendo que a homossexualidade “ofende a cultura” do seu país e que “a maioria dos africanos abominam essa prática”.

Soldados da paz envolvidos em exploração sexual

São mais de 120 mil os capacetes azuis da ONU, destacados em diferentes partes do globo, com a missão de proteger populações e garantir a manutenção da paz. Enviados para locais onde fome, guerra e pobreza não dão tréguas, onde desastres naturais de grandes proporções fazem tábua rasa do quotidiano de milhares, têm surgido relatos e denúncias sobre o comportamento dos soldados da paz.

Em relatórios internos, as Nações Unidas tiveram de reconhecer, por exemplo, que capacetes azuis em missão no Haiti e na Libéria se aproveitavam da situação desesperada de mulheres que se começaram a prostituir. Seriam 480 as queixas de exploração e abuso sexual de capacetes azuis entre 2008 e 2013, referindo-se um terço delas a casos de menores.

Mais recentemente, a denúncia de alegados abusos sexuais na República Centro-Africana (RCA), que teria sido comunicada à ONU sem resultado, levou a que a comissária adjunta para os Direitos Humanos da ONU, Flavia Pansieri, apresentasse demissão em julho deste ano. Outro veterano funcionário da ONU seria afastado do cargo no ano passado, mas por ter passado às autoridades francesas um relatório da ONU sobre os alegados abusos de soldados gauleses no país africano.

As denúncias referem-se ao período entre dezembro de 2013 e junho de 2014. Pelo menos 14 soldados franceses, do contingente enviado para auxiliar uma missão da União Africana na RCA, teriam abusado sexualmente de menores.

 As crianças tinham entre 9 e 15 anos, estavam num centro para deslocados internos no aeroporto da capital Bangui . Em troca de sexo anal e oral, os militares davam aos miúdos comida, garrafas de água, bolachas.

Estando a par das denúncias, a ONU não abriu inquéritos nem tomou medidas que afastassem os suspeitos das crianças. Seria o Governo francês a lançar uma investigação sobre o caso.

ana.c.camara@sol.pt