Os melhores e os piores prefácios

Recordo-me como se fosse hoje. Vinha no autocarro de regresso a casa, encantado com a minha aquisição feita minutos antes na Livraria Buchholz, mas entretanto encontrei um amigo que não via há imenso tempo e nem tirei o livro do saco. De resto, pelo seu carácter mais ou menos luxuoso (a capa de couro macio…

O livro chama-se Romans Picaresques Espagnols (Romances Picarescos Espanhóis). Comecei a lê-lo ainda nessa tarde mas nunca fui muito além do início. O marcador continua parado na página LXXXVIII (nalguns livros franceses, as páginas das introduções, etc. aparecem em numeração romana). Ao longo dos anos tentei por várias vezes retomar a leitura, mas esbarro invariavelmente no mesmo obstáculo: o prefácio, que só termina na página CXLII. Vejam bem: 142 páginas de calvário (ou aparato académico, o que por vezes é um sinónimo) antes de chegar ao ponto de partida! É mais texto do que têm muitos livros.

Tchékov, o grande médico-escritor russo, exprimiu bem o incómodo provocado por alguns prefácios e apêndices do género. Ele que tinha o dom de dizer muito em poucas palavras escreveu o seguinte num dos seus contos: «O tom presumido, condescendente dos prefácios, a abundância das notas de tradução que me impedem de concentrar, os sic e os sinais de interrogação entre parêntesis, que o generoso tradutor espalha por todo o artigo ou livro parecem-me um atentado à personalidade do autor e à minha independência de leitor» (‘Uma História Enfadonha’).

Pouco tempo depois do episódio do autocarro, percebi porém que o prefácio de um livro não tem necessariamente de ser aquele conjunto de páginas que queremos ansiosamente que termine para passarmos ao que interessa. E a descoberta deu-se, curiosamente, através de um texto assinado por um médico e admirador de Tchékov, João Lobo Antunes. Refiro-me ao prefácio de De Profundis, Valsa Lenta, o livro de Cardoso Pires sobre o AVC que sofreu em 1995 e o subsequente período de convalescença. Naquelas 12 páginas em forma de carta, Lobo Antunes dá uma espécie de aula sobre a sua especialidade médica destinada ao público leigo.

De então para cá comecei a prestar mais atenção aos prefácios. Muitos são aborrecidos, redundantes ou limitam-se a cumprir uma formalidade, mas também os há excelentes. Vou dar dois exemplos a que regresso de tempos a tempos: o prólogo de Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de William Shirer, e o de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, de Fernand Braudel. São poucas páginas mas de conteúdo riquíssimo. Um prefácio quer-se assim: acessível, conciso e, sobretudo, que nos deixe cheios de vontade de ler o resto.

jose.c.saraiva@sol.pt