A morte da cotovia

O novo-velho romance de Harper Lee desilude e é um excelente exemplo do pior seguidismo europeu das estratégias de marketing norte-americanas.

Mataram a Cotovia (Relógio d’Água, antes traduzido Não Matem a Cotovia ou Por Favor, Não Matem a Cotovia), primeiro romance de Harper Lee, publicado em 1960, vendeu até hoje 30 milhões de exemplares, em cerca de 40 línguas. Vencedor de um Pulitzer, estudado nas escolas dos EUA, é um clássico da literatura sulista, a par das obras mais famosas de Mark Twain, William Faulkner, Margaret Mitchell, Carson McCullers, Flannery O’Connor ou John Kennedy Toole. Autobiográfico, narra, na perspetiva de uma criança (Jean Louise Scout Finch), como o pai, um advogado de uma pequena cidade do Alabama, defende um negro acusado de violar uma rapariga branca e se torna um herói moral. Após esta estreia, Harper Lee (n. 1926) rejeitou a escrita e a exposição pública e refugiou-se na pacatez da terra natal (Monroeville, inspiração para a Maycomb de Mataram a Cotovia).

Em 2015, Lee, internada num lar, cega e surda, voltou a ser notícia. Falecida a irmã, que sempre cuidara dos seus assuntos, a escritora fez-se representar por uma advogada, que a isolou de qualquer contacto com o exterior enquanto anunciava a descoberta e edição de um segundo romance, escrito nos anos 50 como um ensaio para Mataram a Cotovia. Lançado em julho em inglês, Vai e Põe uma Sentinela chega a Portugal como «grande acontecimento literário», alimentado pelas especulações sobre a legitimidade da sua revelação.

Jean Louise tem agora 26 anos, vive em Nova Iorque, mas regressa a Maycomb para rever o pai, os tios, o namorado (Henry) e fragmentos do passado (em trechos que interessarão sobretudo os leitores de Mataram a Cotovia). À parte as analepses, a narrativa foca a descoberta por Jean Louise do envolvimento do pai e de Henry numa organização de exaltação da supremacia branca.

Nas discussões decorrentes, datadas e enfadonhas, explana-se a retórica racial e, por fim, uma apologia demagógica do sentido de pertença a um lugar. Pelo caminho, frases como «a ilha de cada um de nós, Jean Louise, a sentinela de cada um é a sua consciência. A consciência coletiva, tal coisa não existe», citações de Gilbert e Sullivan e expressões como «por amor da santa» desencorajam até o leitor mais perseverante. Harper Lee e a memória de Mataram a Cotovia mereciam melhor; pelo menos, deste lado do Atlântico.

Vai e Põe uma Sentinela
Harper Lee
Editorial Presença
239 págs., 16.90 euros