Alexandre Castro Caldas: ‘O cérebro é caríssimo. Consome muita energia’

Em tempo de fuga de cérebros, o de Alexandre Castro Caldas não só ficou como dedicou uma vida inteira a estudá-los. Diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Católica, trabalhou com António Damásio, estudou a afasia, o cérebro dos analfabetos e publicou centenas de artigos em revistas internacionais da especialidade. Foi ainda professor…

Estudou a afasia, recebeu o prémio de Medicina da Bial, com um trabalho sobre o cérebro dos analfabetos. Costumamos falar de áreas de ativação no cérebro e de informação. Estamos a falar de uma máquina?

Sim, se tivermos em conta o conceito de máquina na sua essência. Ao longo dos anos foram-se fazendo analogias do cérebro com outras coisas, mas elas devem ser feitas com todo o cuidado. Por exemplo, Descartes tinha um modelo hidráulico, era a época da hidráulica. Antes disso, os líquidos eram a parte importante, os humores do cérebro. Hoje as pessoas estão sempre a fazer a analogia com os computadores. 

E podemos fazê-la?

Cada vez mais defendo que só muito remotamente a podemos fazer – podemos falar das funções gerais do computador, o cérebro também as tem. O computador tem uma memória e nós também. Apesar de tudo, a aproximação é grosseira. Por mais iniciativas que o computador possa ter de vez em quando, o nosso cérebro está constantemente em mudança, a fazer associações, a fazer novas células, novas ligações. E ao longo da vida vai-se modificando radicalmente. Por outro lado, as nossas tomadas de decisão não são idênticas às da máquina, que faz sempre a mesma coisa. Nós não, fazemos coisas diferentes.

Mas cada vez mais delegamos à máquina tarefas da nossa memória. Já não fixamos números de telefone, por exemplo, e agora nem caminhos, vamos ao GPS e deixamo-nos conduzir por ele. 

Será de facto importante saber números de telefone? O telefone já foi uma invenção que arranjámos para poder comunicar e ele próprio já estava a substituir o grito ou a chamada à distância.  É só introduzir mais uma variável. Já não digo o mesmo em relação a introduzir as calculadoras na instrução primária dos meninos. Há capacidades e comportamentos básicos que temos de adquirir, até para facilitar o nosso pensamento. Se eu não faço cálculo mental, fico com o pensamento baseado em cálculo mental intuitivo. Ele existe, os bebés de seis meses fazem-no. Se eles tiverem três brinquedos à frente e um deles cair, sabem logo que falta um. Se não fizermos a transposição desse sistema de cálculo mental para o sistema assente num código simbólico, com o qual passamos a fazer contas independentemente dos objetivos – em que desaparece a intenção, em que podemos fazer o cálculo pelo cálculo, simplesmente -, abdicamos de algo que é fundamental para a nossa vida e perdemos competências mentais. Para que uma pessoa que esteja na caixa não tenha de pegar na calculadora para fazer um troco de cinco para algo que custou três [risos]… 

E no caso do GPS, da memória espacial?

Com o GPS, a situação é um pouco diferente, porque é muito bom que tenhamos estas células, que até estão na origem do Nobel da medicina do ano passado, que são os ‘pombos-correios’. São competências que temos e é bom que as estimulemos. Neste caso, os sistemas externos podem falhar um dia. E se isso acontecer, estamos mal… É evidente que neste momento entendemos estes operadores externos como auxiliares, hoje não vivemos sem um motor de busca para uma informação. É fantástico o que isso representa na nossa memória. Mas temos de ter consciência de que os motores de busca não substituem a escola. Sabemos que podemos ir buscar a informação, mas temos de aprender como a vamos buscar. O que se passa, curiosamente, é que o facto de os alunos de Portugal terem mais computadores nas salas não faz deles melhores do que os outros. É prova de que isso não representou um salto qualitativo. Tudo isto tem de ser estudado, está pouco trabalhado, mas tenho a convicção de que o computador fora da escola é muito interessante. É muito usado para atividades lúdicas e elas, quando não são em excesso, fazem bem às pessoas. Acho que a escola é que tem de perceber como tem de se reorganizar para ser competitiva. Nem diria competitiva, diria para ser agradável.

No fundo, deve tentar dar os meios pelos quais nós vamos saber procurar a informação?

Para tentar obter o máximo rendimento do que estes aparelhos fornecem. Se uma pessoa tiver umas botas fantásticas, elas não chegam para dar uns pontapés numa bola e para fazer golos. 

Mas também disse que essa nossa relação com as máquinas pode ser perigosa. Porquê?

Não é pelo seu uso, é porque elas vão ocupar um espaço de saber que é preciso ser ocupado de outra forma. Mas não estou particularmente preocupado com a introdução de toda esta tecnologia. A preocupação é a mesma que as pessoas tinham quando se introduziram as máquinas na revolução industrial. Quando apareceu o automóvel, as pessoas perguntavam-se como é que um homem poderia aguentar andar a 40 km/h… E a coisa resolveu-se. Se é algo criado pela mente humana, está adaptado à mente humana. 

 Vai falar destas coisas n’A Vida do Cérebro?

Começo por descrever como é que as coisas vão acontecendo nas várias fases da vida. É importante que as pessoas tenham a noção das competências que têm na cabeça. Acho que não têm muito a noção de como é que isso funciona. 

Dizer isso não quer dizer que só usamos um terço do nosso cérebro?

Não, isso não se pode dizer, porque é mentira. Se as pessoas não usam determinada capacidade, deitam-na fora. O cérebro é caríssimo. Gasta imensa energia [risos]. Foi o que aconteceu com os analfabetos, eles não usaram determinadas áreas para aprender e essas áreas desapareceram, não se organizaram. 

E depois são irrecuperáveis?

São. Tenho imagens dos que aprenderam a ler aos 50 anos e estão a ler com outras estruturas. Não estão a ler com as mesmas regiões do cérebro. Felizmente, temos várias capacidades para nos adaptarmos aos problemas que nos põem. Portanto, eles não desenvolveram as que são próprias, nunca serão leitores rápidos e capazes, até porque ativam muito mais áreas. Têm de usar muito mais cérebro para fazer a operação. 

E o facto de termos mais acesso a informação audiovisual vai-nos permitir evoluir mais depressa? 

Provavelmente hoje somos diferentes do que éramos há 500 anos. Há uns anos, na Europa, as pessoas aprendiam a ler mais tarde. Hoje aprendemos mais cedo, o que significa que isso já está a ser incorporado, o cérebro está preparado para as pessoas o fazerem mais cedo. O cérebro vai mudando, se não mudasse ainda éramos macacos. 

Mas podemos chegar a ser outra espécie, depois do Homo sapiens sapiens?

Daqui a alguns anos, se calhar, chegamos a outro estágio. Quando falamos do sapiens estamos a falar de milhões de anos. Faziam-se coisas fantásticas há 500 e há mil anos, mas não sabemos como eram as pessoas. Se calhar eram mais lentas, processavam a informação mais devagarinho. Mas mesmo no nosso tempo, lembro-me de quando era miúdo, passava férias em casa da minha avó, e o dia da chegada era anunciado com um postal, com a antecedência de uns dias. O telefone era num sítio longíssimo. É evidente que hoje é tudo muito mais rápido, mas aprendemos a selecionar aquilo que nos interessa, criámos níveis e filtros para isso. E as pessoas vão aprendendo a fazer os seus filtros. Até porque se não tivermos filtros para tentar chamar a atenção, isso desencadeia-nos um sobressalto. Podemos assustar-nos e ativamos o cérebro todo, o que sai caríssimo. Cada vez que apanhamos um susto, é uma despesa enorme [risos]. 

Costuma pensar-se que o cérebro se degrada à medida que envelhecemos.

Não. Há idades próprias para cada coisa. Esta necessidade que a sociedade moderna tem de se manter jovem toda a vida é completamente contranatura. Se há algo que temos comprovado biologicamente é que há um ciclo da vida. Ele está a crescer, estamos a viver até mais tarde, mas envelhecer faz parte desse ciclo. Temos é de saber adaptar a nossa vida ao ciclo em que estamos. É fundamental que, na fase em que temos o cérebro preparado para as coisas, elas estejam presentes, porque se aprendem com mais facilidade. 

E sabemos dizer, com esse grau de precisão, o que é adequado para estar à nossa espera em cada fase da vida?

Algumas coisas sim. O exemplo que as pessoas todas dão é o sudoku, as sopas de letras e as palavras cruzadas. Sem dúvida que isso é muito engraçado para as pessoas estarem entretidas, e enquanto assim estão, não estão a pensar noutras coisas mais complicadas. Mas não ajuda as pessoas a saberem onde puseram os óculos ou as chaves de casa. Serve para fazer bem palavras cruzadas, sopas de letras e sudoku. O que se tem procurado é encontrar quais são os elementos que nos permitem, de facto, ter uma vida agradável nas idades mais avançadas, adequada àquilo que se pode fazer. Há muitas coisas que estão a ser comprovadas como eficazes. 

Quais?

É preciso manter uma vida ativa, mexermo-nos durante o dia. Não precisamos de fazer culturismo, basta vir para a rua. E precisamos ter relações sociais. O convívio é essencial, se não convivermos, caímos nas nossas convicções. E isso faz com que, a certa altura, sejamos completamente egocêntricos e achemos que a verdade é nossa. Enquanto formos capazes de conviver com os outros e discutir as coisas, conseguimos manter a vitalidade. Diria que esse é ponto mais importante: manter, não o Facebook, mas a relação humana propriamente dita. Essa relação tem o olhar das pessoas, as expressões, as emoções. Tem o toque, a palmadinha nas costas, o abraço, o aperto de mão, o beijo, tudo isso faz parte da conexão, da matriz de ligação das pessoas. 

Também menciona a música.

Temos negligenciado a nossa cultura musical. A música é extremamente importante para fazer uma aproximação de funções dentro do cérebro, para fazer um processamento paralelo de informação. As pessoas deviam aprender música desde pequeninas, devia haver música nas escolas. A que há é incipiente. Há dias fui fazer uma conferência para miúdos da 4.ª classe no Conservatório do Porto. Foi das coisas mais engraçadas que fiz na vida. Os miúdos são fantásticos, estavam todos muito caladinhos a ouvir e fizeram perguntas giríssimas. 

Por exemplo?

A certa altura, falei da importância da música e perguntaram-me como é que era aquilo de passar a informação do hemisfério esquerdo para o direito. Tinham ouvido tudo e tinham percebido. A aprendizagem musical no Conservatório é muito educativa. Até para a maneira de estar no mundo. Eu via os miúdos em cantinhos a prepararem coisas em equipa, cada um com o seu instrumento. De facto, a música é curiosa, porque não só desenvolve capacidades motoras e sensoriais – o gesto vai produzir uma coisa que vai ter impacto no outro; tal como a linguagem, mas exige um desenvolvimento maior da atividade motora e se sair bem, imediatamente, as pessoas são compensadas. 

São muitos exemplos – o convívio, o toque, o movimento, a música…

Se juntarmos tudo, o que dá? A dança. Tem tudo – movimento, o gesto, o toque, a música, o trabalho em equipa…

Mas todos esses exemplos parecem contra a corrente da sociedade atual. A sociedade valoriza os jovens, a rapidez, o imediatismo, a competição.

É um suicídio social. As instituições perderam completamente a memória. Ouvimos os políticos a falarem e ficamos aflitíssimos, porque não têm cultura política, não sabem História, o que aconteceu no mundo. Discutem problemas importantes sem se aperceberem o que é uma experiência prévia. Já cá estamos há muito tempo. É preciso saber como se formou a Europa… 

O nosso cérebro altera-se com esse ritmo?

O cérebro cresce, aumenta conforme as funções. Fez-se um estudo com as pessoas que têm muitos amigos no Facebook e de pessoas que têm muitos amigos mas em presença, fora das redes sociais. O cérebro de uns e de outros é completamente diferente. Os segundos têm as áreas relacionadas com os afetos mais desenvolvidas e as do Facebook têm as áreas da memória semântica mais desenvolvida. 

Podemos recuperar, depois, um dia que o Facebook deixe de estar na moda?

Apesar de tudo, as pessoas não ficam completamente isoladas. Felizmente, há muitas pessoas que não têm Facebook. Estamos a falar, talvez, de 30% da população mundial. E que se considera dona do mundo [risos]… Ainda assim, há uma reserva grande de pessoas com competências mais naturais. 

Também disse, noutra ocasião, que as áreas de gratificação no cérebro para os afetos e o dinheiro são as mesmas.

Conhecemos as áreas de recompensa nos seres humanos. E isso faz um bocado de impressão, porque são as mesmas para várias coisas, não há diferenciação. Se for dinheiro ou se for afeto, a área é a mesma. 

A ideia de que o dinheiro não traz a felicidade, então, não faz sentido? 

Acho que, apesar de tudo, conhecer o cérebro obriga-nos a fazer uma reflexão sobre o que é importante, à nossa medida. Se vivermos com o que é importante e é frequente – sem dúvida que o cérebro funciona em termos de frequência -, naturalmente começamos a desenhar um panorama do universo muito bizarro e distorcido. Se não policiarmos o nosso pensamento, confrontando-o com os outros, e ver o que os outros pensam, escreveram ou disseram, somos capazes, por exemplo, de dizer que nunca houve o Holocausto. E há pessoas que o dizem, porque não lhes chegou a informação e não tiveram o cuidado de investigar sobre o assunto. Temos de ser contra-intuitivos. E isso é válido para muitas coisas. Os desastres de automóvel, por exemplo, dão-se porque as pessoas não são contra-intuitivas. Dizem ‘sempre ultrapassei nas curvas e nunca tive nenhum desastre, portanto não vou ter desastres’. Quando dizem ‘guio muito bem, nunca tive nenhum desastre’, eu digo-lhes ‘estás mesmo pronto para ter um’. As pessoas desleixam-se. 

Isso parece aplicar-se a inúmeras áreas da vida.

A muitas coisas. Se quisermos saber quem foi o responsável por uma obra, entramos lá dentro e procuramos quem não tem capacete [risos]. 

Isso pode ser extrapolado aos grandes bancos, quando a crise mundial começou?

É evidente que a situação dos bancos é muito mais complicada. Se a pessoa tiver uma enorme ambição, se tem os instrumentos que lhe permitem, sem ser descoberta – pensa ela -, conseguir ultrapassar certos limites, se não se policiar muito e se se deixar levar pela onda da sua ambição, faz erros. 

Seria melhor dar às pessoas que vão para esses postos-chave a formação suficiente para fazer esse autopoliciamento?

Talvez uma formação humanística. No ano passado durante as conferências do Estoril, que são organizadas pela Universidade Católica, ouvi um professor de economia de Harvard defender a necessidade de introduzir as ciências humanas na formação dos economistas. Aí é que está a solução. De facto, o mundo está neste estado porque as pessoas enveredaram por um caminho completamente bizarro, dedicado exclusivamente ao dinheiro. Quando o dinheiro deixou de ter significado… Desde a guerra que deixou de haver o equivalente em ouro. Passou-se a ter um referencial teórico. Portanto, o dinheiro não é nada. Estamos a viver de nada. O que significa um euro? Não sei. 

Dizem que falta, mas há grandes concentrações em locais específicos…

As assimetrias são enormes, sem dúvida, mas depois acontecem coisas muito interessantes do ponto de vista social: o que aconteceu em Portugal nos últimos meses foi uma mudança de comportamento. As pessoas, de repente, começaram a fazer consumo. E, de facto, nada melhorou. 

É uma fuga para a frente, uma catarse coletiva?

Não sei, é inconsciente na maior parte das pessoas. Sentem-se mais confiantes, não se percebe porquê. Talvez pensem que afinal a situação não estava tão má como isso. Basta haver um clique qualquer, a ideia de fim de ciclo, mas talvez estejamos a caminho de um ciclo mais difícil. Posso dizer, pela minha atividade profissional de médico, que houve uma diminuição de procura de ajuda nos consultórios e agora voltou outra vez à normalidade. 

Há estudos que dizem que aumentou o consumo de antidepressivos.

É muito difícil medir. Acho que as pessoas confundem tristeza com depressão. As pessoas habituaram-se à ideia de que estar triste é uma coisa que não pode ser. O luto não é para fazer. E imediatamente e com toda a facilidade se tomam antidepressivos, que não são de facto úteis numa situação de luto fisiológico, porque faz parte da natureza humana as pessoas terem situações de tristeza e situações de alegria. Não podemos andar sempre agarrados a pílulas porque corremos o risco de, não fazendo o luto, ele poder nunca mais se fazer. Acho que existe uma certa mão leve para prescrever antidepressivos. Havia aí um anúncio que dizia ‘estás tão bem, o que tomas?’. Não se pode estar bem sem tomar nada?

Mas aos médicos é pedida a produtividade, atender pacientes em 15 minutos. 

O grande problema é haver médicos que aceitam. Todo o sistema de prestação de cuidados de saúde modificou-se radicalmente, porque nasceu uma nova classe, a dos gestores. Muitas vezes aparecem nos hospitais gestores que não fazem a mais pequena ideia do que é um hospital. Acham que a gestão é transversal, os indicadores são sempre os mesmos. Se pegarmos nos indicadores de produção num hospital, eles são assustadores. Quando o hospital devia estar preocupado em ser a banca da investigação de saúde, porque ali é que caem os problemas todos. Mas quando queremos fazer investigação nos hospitais, não há tempo para isso. A única resposta possível para quanto tempo demora uma consulta é ‘o que for preciso’. 

ricardo.nabais@sol.pt