Cavaco foi camarada

Os grandes espíritos raramente são compreendidos no seu tempo – tragédia cronológica sem solução aparente, que apenas tem feito lucrar os pseudo-exegetas posteriores, arvorados em donos das verdades difíceis que o tempo entretanto fez o favor de tornar correntes.

O discurso em que o Presidente da República indigitou o primeiro-ministro provocou um coro de incompreensão à esquerda e à direita; nem aqueles que o quiseram defender – e têm sido muitos, o que é de louvar num país com fama de maledicente – souberam entendê-lo.

A direita elogiou a firmeza com que o Presidente defendeu os compromissos financeiros internacionais da Pátria, a sua pertença à União Europeia e à Nato. A esquerda, incluindo esses bastiões do radicalismo marxista internacional que são a revista norte-americana Forbes e o jornal inglês The Telegraph, acusaram-no de ter colocado a sua própria «agenda ideológica reacionária» à frente dos princípios democráticos, designadamente ao excluir da possibilidade de governação partidos com assento parlamentar. Ambos se enganaram, como está à vista.

Um estadista com trinta anos de ofício não fala por impulso, nem tem estados de alma.

A principal missão do Presidente é a de unir os portugueses, nem que para tal tenha de se imolar a si próprio, oferecendo-se em sacrifício no altar dos equívocos.

Foi isso que fez Cavaco Silva. Numa primeira fase, pediu ao líder do partido mais votado que procurasse entender-se com o líder do segundo partido. A esperança seria pouca, porque as tentativas anteriores não tinham corrido bem, mas alimentar a esperança é uma das funções presidenciais.

Gorada essa tentativa, o Presidente terá meditado no que poderia dizer para fomentar uma maioria estável – e acabou por decidir concentrar em si o ónus do ódio, de modo a criar entendimentos que pareciam difíceis. Qualquer um de nós sabe que a melhor maneira de unir familiares desavindos é contribuir para o abate moral de um deles; por muito que nos queixemos da mãe ou do cônjuge, assim que a pessoa com quem desabafamos nos confirmar que eles não prestam, erguer-nos-emos logo em sua defesa.

O Presidente não faria um discurso violento sem medir as consequências das suas palavras – que foram rápidas e evidentes: a esquerda, que parecia ter dificuldade em estabelecer um acordo real, pôs imediatamente as divisões para trás das costas e decretou-se pronta a apoiar um Governo socialista; o primeiro-ministro indigitado, por seu lado, fez logo saber que não estaria disposto a «ficar a assar» num Governo de gestão. O discurso do Presidente cumpriu o seu intento: acelerou e fortaleceu a criação de uma nova maioria. Tudo está bem quando acaba bem.  

Entretanto, o primeiro-ministro apresentou um Governo com dois novos ministérios que vinham a ser reclamados pelo Partido Socialista: Cultura e Modernização Administrativa.

A Cultura – tema esquecido por todos os partidos durante a campanha eleitoral, como é costume, a não ser para as fotografias e os fogos-de-artifício finais – fica bem num Governo de amostra, que já se sabe que não vai poder governar. Nada de novo.

Algumas tradições vão-se alterando, por muito que custe à esmagadora maioria dos comentadores televisivos, que aparecem à beira da apoplexia – vejam uns episódios da série dinamarquesa Borgen, que isso passa-lhes – mas os fundamentos de uma cultura demoram a mudar.

Só não se diga que é por falta de esforço do martirizado Presidente da República.

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