Temei a fúria dos mansos

Em sessenta e oito do século passado, o Prof. Manuel Antunes, padre jesuíta, sábio e santo, interpelou dois jovens estudantes, vivos e identificáveis, que faziam o seu primeiro piquete de greve:

– para que é preciso tanta violência?

– professor, conhece alguma situação de opressão da qual se tenha saído sem ser pela violência?

o sábio pensou um minuto, ou talvez dois, e respondeu: «que me recorde, só conheço duas: jesus cristo e ghandi. e, mesmo assim, não sei se as suas formas de intervir não foram novas formas de violência, não primária!».

no passado domingo, as televisões transmitiram imagens não editadas do centro de atenas a arder.

a arder, fruto do desespero de um povo que foi enganado durante muitos anos pelos seus dirigentes e por outros estadistas europeus, que os convenceram ser normal, entre os estados-membros, entregarem em bruxelas contas deliberadamente erradas e endividarem-se para além do que alguma vez poderiam pagar.

o berço da democracia parecia, há muito tempo, governado por uma turma de bambolinas e arlequins, sem qualquer zorba que pusesse fim à loucura colectiva.

péricles, se fosse vivo, acharia que este era o tempo certo para nomear um ditador, durante seis meses, para pôr ordem nas hostes e restaurar a democracia!

os ditadores gregos, na antiguidade clássica, só podiam deter o poder durante meio ano e faziam parte do primitivo sistema democrático.

no sábado passado, em lisboa, cerca de trezentos mil trabalhadores e reformados, sob a liderança da intersindical, percorreram a baixa da cidade, concentraram-se na praça do comércio, contestaram, reivindicaram, deram sinal da sua fúria, e não se partiu um vidro, nem de autocarro.

na minha perspectiva, os manifestantes de lisboa devem ser levados muito a sério por este governo, que foi democraticamente eleito, bem como pelos senhores da europa – à qual chamaram comunidade, para nos iludir.

abrindo as páginas dos jornais nos últimos dias, constato que parte dos dirigentes deste país perderam a noção do real, obcecados com a bandeira hasteada pelo primeiro-ministro: ser mais troikista que a troika. custe o que custar.

alguns eram pessoas sensatas antes de assumirem o poder, através de eleições livres, numa situação caótica.

mas deixaram todos, ou quase todos, de saber ler sinais.

vejamos o que se está a passar com os militares.

os militares portugueses derrubaram um regime ditatorial com 50 anos de existência sem disparar um tiro. passado um ano sobre o golpe de estado, e conforme o prometido, devolveram ao povo o direito de voto e respeitaram-no. ora esses militares sentem hoje necessidade de escrever ao ministro da defesa uma carta aberta, na qual dizem: «nada nos obriga a ser submissos». é uma reacção a muitos desmandos, mas também à frase do ministro: «se não sentem vocação, estão no sítio errado. antes de protestar, precisam mudar de carreira».

que foi que lhe aconteceu, senhor ministro?

nunca foi à tropa? não dormirá há muito tempo? ou ninguém no ministério lhe explicou que os militares não gostam de levar afrontas para casa?

as questões de conflito entre poder civil e militar discutem-se no segredo dos gabinetes.

outro exemplo: os salários a partir de 675 euros são penalizados já a partir de fevereiro na retenção na fonte do irs.

um contribuinte solteiro com um dependente, cujo salário seja de 700 euros, que foi sujeito em janeiro a uma retenção de 3%, terá em fevereiro uma retenção de 4%.

se o contribuinte receber 5500 euros, terá uma percentagem de retenção de igual montante.

em nome de que santo se chama a isto equidade fiscal?

uma última nota: o bloco de esquerda leva à comissão de educação um projecto de lei que prevê o fornecimento de pequenos-almoços às crianças das escolas públicas que deles necessitem.

a isto chama-se fome.

todos sabem que ela existe, disfarçada ou não, em todo o país.

somos pacíficos, não somos submissos.

catalinapestana@gmail.com