O humor nos tempos de cólera

Uma das funções mais importantes que a comédia pode ter é a de relativizar. Quando, por exemplo, os alvos do humor são políticos, figuras da autoridade ou mi-bi-trilionários, aquilo que simbolicamente se ‘ataca’ são signos de poder.

e uma das razões que leva alguém a rir nesse contexto é o facto de, por momentos, esse representante de algo superior a nós ter sido demovido do seu pedestal – colocado, nem que seja por instantes, ao nível ou mesmo abaixo do destinatário da comédia. a importância daquele que é parodiado, seja por ironia, sátira ou outro meio, foi assim relativizada.

todavia, atravessamos tempos de tal forma complicados que há interrogações negras a surgir. suponhamos que, em portugal, os brandos costumes se esfumam de vez e, literalmente um dia destes, evoluímos para a situação caótica de uma grécia actual. exactamente como poderemos divertir quem não tem emprego nem perspectivas, quem for para a rua desesperado e com uma pulsão violenta? como pode o humor servir de forma adequada a sociedade? enquanto procuro um fio de prumo, penso que: se for pela rama, será insultuoso; se for incisivo, poderá ainda assim ser inútil.

tenho esperança, mas muitas dúvidas. voltarei a este assunto.

ii – show must come on

recentemente, o excelente ponta-de-lança lima, do sporting de braga, marcou mais um golo decisivo e encontrou uma peculiar maneira para festejá-lo. tirou uma máquina a um dos fotógrafos aninhados junto à bandeirola e clicou na direcção de companheiros e adeptos. o árbitro mostrou-lhe cartão amarelo.

poderia ter ido ao google confirmar o nome do juiz da partida e, já agora, do adversário bracarense. mas, de facto, deve significar algo ter-me ficado somente esta memória do jogo. aliás, num excelente exemplo de infotainment, o programa mais futebol (tvi24) arrancou com um delicioso ‘furo’, precisamente as fotografias tiradas por lima, curiosamente cedidas pelo fotógrafo proprietário da máquina tomada por empréstimo, de seu nome… lima. foi comentado, e bem, que punir disciplinarmente um jogador por semelhante gesto é uma parvoíce. tal como aqueles amarelos a quem tira a camisola durante os festejos.

numa altura em que o dinheiro é cada vez menor e a necessidade de alienação cada vez maior, o espectáculo do futebol tem um importante papel social a desempenhar. e só o privilegiamos se forem permitidos momentos singulares, estimulantes e adequados a levar mais pessoas aos estádios (ainda por cima os instantâneos de lima eram bem decentes, como um belíssimo plano subjectivo de alguns dos seus colegas a posar/festejar para a memória do golo – em que outra altura tivemos acesso a uma imagem directamente extraída do campo de visão de um dos protagonistas?).

por mim, não são necessários artifícios à americana, como actuações da madonna ao intervalo ou interrupções para anúncios obscenamente dispendiosos. basta darem carta de alforria aos artistas. deixem-me ver um apaixonado sérgio conceição invadir o campo para abraçar os seus atletas, jogadores correrem com as bandeiras dos seus países, coreografias parvas, beijos a meninas histéricas nas primeiras filas ou craques que roubam o microfone ao nuno luz para dizer umas palavrinhas no calor da emoção. o importante é a festa, e estarmos todos convidados.

iii – frase a frase,

enche a reacção o papo

vivemos a mil à hora e não sei se isso é bom. é a era do soundbyte. há vários anos que a classe política o percebeu e assim desatou a ensaiá-los (é capaz de ter sido na mesma altura em que se tornou próxima de agências de comunicação): querem-se contundentes, fortes, quase bordões com a susceptibilidade/desejo de poderem ser repetidos na rua, nos cafés, nos dias seguintes. há que espetar uma lança em áfrica. entenda-se a segunda por ‘agenda dos média’ e a primeira por ‘soundbyte’. o ‘choque tecnológico’ de sócrates ou o ‘país de tanga’ de durão ainda hoje fazem escola. é preciso dar nas vistas, chamar a atenção, ganhar precioso tempo de antena.

mas esta ambígua medalha tem, como as outras, reverso. e esse encontra-se nos soundbytes involuntários, porventura infelizes. o ‘é fazer as contas’ de guterres ou o ‘portugueses não podem ser piegas’ de passos coelho, por exemplo. ui, como as oposições do momento lhes chamam um figo. e, hoje, com o advento das redes sociais, se a frase for dita de manhã, já foi totalmente difundida, glosada, invertida, por vezes descontextualizada, revista e aumentada e etc., ainda o dia vai a meio. desaparece qualquer hipótese de um ponto de retorno. está instalada a reacção elevada à máxima potência.

evidentemente que, quanto mais alto o grau de responsabilidade do titular de um cargo público, maior cuidado tem de ter com a língua. mas pergunto-me se, no estado em que nos encontramos, não ganharíamos mais em agir em vez de reagir, ser pro-activos ao invés de meramente reactivos. perde-se demasiado tempo com discussões de semântica em portugal. e o tempo, hoje, por aqui, é um luxo.

lfb_77@hotmail.com