Mais vale prevenir do que remediar…

Era uma vez uma quinta, igual em quase tudo às outras quintas da vizinhança.

tinha uma capoeira, um curral, um estábulo e uma represa que fazia de lago – onde nadava, austero e elegante, um cisne negro. também tinha um cão chamado faísca, conhecido por ser justo e compreensivo.

na capoeira viviam-se tempos difíceis.

os donos da quinta tinham falta de dinheiro, e a pressão sobre as galinhas poedeiras era muito grande. as que não punham a quantidade de ovos considerada rentável eram levadas semanalmente para a feira e vendidas para canja.

havia também um pato, de penas encardidas, que, aproveitando a crise, fez com as galinhas um pacto secreto: ele fornecia-lhes ovos que obtinha na candonga e, em troca, elas permitiam que os seus pintos lhe fizessem favores pessoais.

uma pintainha sentiu-se muito mal com os favores que lhe eram pedidos e foi falar com o galo-badalo, chefe da capoeira.

perante a estória que ouviu, o galo começou a ficar vermelho, roxo e, quando já estava quase cor de laranja, respondeu-lhe a gaguejar, que era tudo para bem do galinheiro: um pacto era um pacto, e ninguém morria por dar ou receber umas bicadinhas do pato-cartola.

a pintainha não se conformou e apelou ao cão, que a ouviu revoltado. e, como era amigo do cisne, falou com ele, que era a figura mais respeitada entre a família das aves.

quase por magia, tudo mudou no galinheiro.

as galinhas-mães mostraram-se muito zangadas pelo facto de os seus pintos não lhes terem pedido ajuda. como se elas não soubessem de nada e não fizessem parte do pacto!

o galo perdeu o respeito de todo o galinheiro e, lentamente, foi morrendo de vergonha. o pato-cartola desapareceu numa noite de lua nova e conta-se que foi levado ao conselho dos animais, intimado pelo faísca a partir para nunca mais voltar.

esta é, em síntese, uma fábula escrita pelo raúl melo, psicólogo preventivo e criativo, nos princípios de 2002.

num quarto do isolamento do hospital de santa maria, enquanto lutava contra uma leucemia, concebeu o tronco comum daquilo que mais tarde se transformaria no p.i.p.a.s. (plano integrado de prevenção dos abusos sexuais).

trata-se de um conjunto de materiais concebidos por uma equipa multidisciplinar, testados em contexto real, e cada um dirigido a um nível etário diferente.

a sua utilização implica formação específica para tal.

foi aplicado durante três anos na casa grande com histórias tristes. foi avaliado – e a sua adequação aos objectivos foi confirmada.

estava em condições de passar a integrar a formação inicial e contínua de todos os profissionais de saúde e de educação.

ora, que será feito dele?

num tempo em que, como na fábula, há crise na capoeira, as galinhas estão em stresse permanente e, portanto, produzem menos ovos. os galos são figuras gelatinosas e conformadas, com pactos injustos que sacrificam sempre os mais fracos.

nem todas as quintas têm cães pastores, generosos e fortes, nem cisnes negros elegantes, austeros e sábios, para se oporem às pragas de ratazanas comandadas por patos de penas gordurosas e encardidas.

talvez prevenir seja um processo caro na concepção dos economicistas. mas prevenir é poupar: poupar muito dinheiro e poupar seres humanos, cujas vidas entram em caminhos muitas vezes sem regresso.

nenhum megaprocesso repõe qualquer tipo de justiça, a dez ou a quinze anos de distância de qualquer crime cometido, seja por quem for, contra seja quem for.

não há justiça na espera.

prevenir é sempre mais eficaz do que remediar.

a ‘remediação’ é um remendo que, por muito bem feito que seja, nunca passará de remendo.

catalinapestana@gmail.com