Óscar para Melhor Nostalgia

Não me lembro da última vez que fui ao cinema – penso nisto ao entrar na sala para ver o encantador O Artista. Provavelmente por se tratar de um filme mudo notam-se ainda mais os energúmenos das sessões esgotadas. Dividem-se em três sub-géneros (com ênfase no SUB):

a) as vítimas de bronquite asmática – uma espécie estóica de gente que passa a vida a tossir e, em vez das urgências do hospital, escolhe ir ao cinema precisamente no dia em que parecem acometidos de um ataque terminal de tosse convulsa – consta que alguns chegam a deixar o pâncreas e o baço debaixo das cadeiras na fila da frente, para onde os órgãos entretanto rebolaram;

b) os comentadores – uma categoria de pessoas muito seguras da sua opinião e perfeitamente convictas de que é urgente partilhá-la com o mundo: exemplo concreto, o da senhora-dona-tia-queque que, em pleno o artista, comentava o nojo que sente por estes filmes ‘antiquérrimos e aborrecidos’ e pasmava com o facto de este em particular ter tantas nomeações em 2012 (sic);

c) os serial-pipoqueiros – uma franja humanóide que apenas sobrevive através do consumo constante de pipocas, como se estivessem ligados a um soro feito de milho frito. extraordinariamente barulhentos, parecem acreditar que, dentre as mil e tal pipocas no balde, encontra-se porventura uma pepita de ouro que os resgatará imediatamente da recessão. pelo que procedem tenazmente à sua busca afã durante o desenrolar de toda a sessão.

houve um tempo, era o escriba universitário, em que via quatro filmes religiosamente no dia das estreias – às vezes mesmo cinco, quando o monumental apresentava sessões às duas da manhã. ia às aulas, almoçava na cantina com o jornal ao lado, e traçava um plano detalhado para a tarde e resto do dia que implicaria saltitar de cinema em cinema, síncrono com as horas dos filmes. o único critério era a proibição auto-imposta de jamais assistir a películas de jean-claude van damme. vi uma retumbante quantidade de porcaria mas chegava à noite dos óscares um perfeito expert nos melhores filmes a concurso, e chegava a torcer durante a cerimónia como um adepto fervoroso na bancada do estádio.

este ano, restou-me o artista, o regresso do veterano billy crystal, e a nostalgia boa da época em que viajava sentado no escuro, e a correr entre sessões a pé ou via metro, imaginando-me parte de enredos fantásticos ao virar de cada esquina. não sei como passei de cinéfilo para dvdófilo, mas espero ainda ir a tempo de recuperar a ilusão.

ii – boys will be boys

este escriba é tão dado ao carnaval que regra geral só se lembra dele quando assiste na tv a raparigas seminuas algures no país a saltitar contra o frio de sorriso amarelo, naquilo que apelidam de ‘samba’ mas que alguns poderiam confundir com epilepsia.

contudo, tal como o amor pode atingir uma pessoa quando esta menos espera, o mesmo é susceptível de acontecer com o carnaval. literalmente. assim aconteceu há uns dias, quando me preparava para sair do carro e este foi atingido por um balão de água. era isso ou um pombo a tentar o suicídio. as dúvidas dissiparam-se quando um segundo balão foi arremessado dum 3.º andar, obrigando a esquivar-me dele com um jogo de pés que faria inveja à rainha do carnaval de loulé. um simpático casal, acompanhado pelo filho pequeno, abordou-me para dizer que lhes tinha acontecido o mesmo há minutos. com outra sorte, a julgar pelas manchas na roupa. palavra puxa palavra e lá nos despedimos de ira apaziguada e com a consolação de, enfim, paciência, provavelmente termos feito o mesmo em miúdos.

meia hora depois, estava o escriba de regresso ao coche para abandonar o local quando vejo uma mulher aos gritos, a filhota em pranto e o marido a galgar um muro para tocar com estridência à campainha do prédio dos malfeitores. os serial-wetters tinham claramente voltado a atacar. tomado por um instinto bizarro, decido juntar-me ao homem. em segundos, estava assim reunido um pequeno comício de vítimas à porta do edifício, tocando alternadamente nas campainhas do 3.ºa e do 3.ºb, na esperança de trocar dois dedos de conversa com os progenitores das pestes. o novo casal, o antigo casal, as criancinhas, e anteriores vítimas.

e é aí, enquanto o diabo tirava uma ramela, que surgiu uma cisão insanável no grupo de contestatários: as mulheres queriam falar com os pais dos perpetradores sobre civismo; os homens ansiavam por dar uns tabefes nos fedelhos ou, em última análise, partir um vidro do infame 3.º piso à pedrada (um dos maridos apresentava-se já com dois seixos na mão e o fogo já feito, mas na alma).

os ânimos esfriaram, felizmente não à mercê de novos arremessos de balões de água, mas porque ninguém respondeu às campainhas histéricas. e abandonámos a cena, de regresso aos guiões das vidas de cada um, com um envergonhado mas sorridente momento de solidariedade masculina: graças aos céus pelas esposas, se não fossem elas é certo e sabido que homens feitos poderiam ter-se deixado levar pela exacta mesma raivinha que sempre trouxeram consigo desde a infância.

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