Os líderes não se queixam

Foi no final de Dezembro do ano passado. Na nossa freguesia, que é uma espécie de aldeia urbana, os habitantes permanentes (quase todos idosos e de baixos recursos financeiros) e os habitantes temporários (todos jovens, a frequentar a Faculdade de Motricidade Humana) despertaram para um pesadelo em estado de vigília.

a carris, e o governo seu proprietário, propunham-se acabar com a carreira 76.

a carreira 76 é um autocarro que liga a faculdade de motricidade humana a algés, e serve as populações do dafundo e da cruz quebrada.

no meio, fica o centro de saúde e os correios, onde a maioria dos habitantes permanentes recebe as parcas reformas.

a alternativa é uma empresa privada, muito mais cara, e para cujos autocarros a maioria dos seniores tem dificuldade em subir.

em dezembro passado, com a faculdade em férias de natal, não se falava de outra coisa: na farmácia, no talho, no adro da igreja, no silva e na d. maria dos electrodomésticos.

tínhamos de fazer alguma coisa. cada um dava o seu palpite: fechar a marginal com os mais velhos na primeira fila para que se visse bem do que se tratava; fazer um abaixo-assinado explicando a situação a que ficariam condenados os mais frágeis dos fregueses.

alguém criou uma comissão de utentes.

colou fotocópias em cada uma das portas e foi convocando plenários, que iam decidindo o que tinha de ser feito.

fez-se de tudo, passou-se da palavra ao acto. já somos adultos em democracia.

os que prestam atenção aos movimentos de cidadãos devem ter visto e ouvido na televisão uma vizinha minha (com quem nunca conversei sobre política nos 40 anos em que aqui vivo) explicar para as câmaras o porquê e para quê da manifestação.

falou simples, claro e firme. toda a gente percebeu. depois, resolvido o problema, regressou à sua vida privada sem esperar honras ou glórias.

não sei qual das iniciativas foi mais eficaz, sei apenas que a carreira 76 se manteve.

ontem, ao descer a minha rua, alguém me disse que o presidente da junta de freguesia tinha sido ouvido em inquérito-crime por suspeita de ter organizado as manifestações.

não acreditei.

passei pela junta a perguntar. ele desvalorizou, mas confirmou.

tinha sido convocado pela secção de investigação criminal da psp para ser ouvido no próprio dia, às ordens do ministério público, por suspeita de organização de corte da av. marginal junto ao aquário vasco da gama.

«não tem importância – dizia – não fui eu que organizei, mas tenho pena. teria organizado sem lhes dar qualquer pretexto para andarem a gastar tempo que nós pagamos (o meu e o deles) sem efeito prático na segurança dos cidadãos».

o presidente é muito jovem mas tem uma maturidade que espanta.

é um líder natural, e os líderes não se queixam nem aceitam provocações.

eu e muitos do meus vizinhos (nas aldeias as notícias voam) ficámos escandalizados.

todos vemos nos vários canais de televisão os militares da gnr e os agentes da psp das zonas mais perigosas dos grandes centros urbanos impedidos de perseguir criminosos porque a única viatura disponível para o serviço ardeu.

todos nós (os meus vizinhos e os outros concidadãos) vemos crimes brutais prescreverem, ou terem a sua investigação ficticiamente prolongada durante anos, ao belo prazer do dinheiro de que dispõem os arguidos. e, simultaneamente, as autoridades gastam o seu tempo e dinheiro com questões desta natureza.

estamos a pensar por cá, no reino da cruz quebrada livre, começar a mandar postais para a secção de investigação criminal de oeiras, a dizer simplesmente: «o direito de manifestação ainda é constitucional, eu também lá estive e quero ser responsabilizada/o por isso. o presidente da junta de freguesia não tem tempo para vos aturar. tem de conduzir os miúdos à escola, buscá-los à hora de almoço, levar os da tarde e trazê-los de volta. tem de organizar a inventariação de todos os idosos que vivem sozinhos, e articular os recursos existentes para que não sejamos surpreendidos com vizinhos mortos em casa há tempo indeterminado. tem de transformar ajudas essenciais à sobrevivência em lojas solidárias para manter a dignidade».

eu e muitos dos meus vizinhos vamos com ele da próxima vez para sermos ouvidos. chamamos a isto ‘greve de co-responsabilidade’.

catalinapestana@gmail.com