Do tijolo ao fio de pesca

Há uns anos, Sara teve a sua mais forte experiência de contacto directo com o Mal.

mulher madura, de bem consigo, com os outros e com deus, costumava dizer com ar de gozo que estava pronta para morrer: «acredito que existe outra vida depois desta, mas se não existir também não terei tempo para lhe sentir a falta».

desde cedo começara a despertar para as questões do bem e do mal, numa família pobre em recursos materiais e rica em utopias.

foi uma mulher de sorte, pois nos mil caminhos da vida cruzou-se com pessoas de grande qualidade humana.

com algumas aprendeu que ‘tijolo’ era a palavra-símbolo da mudança radical que era preciso fazer na qualidade de vida das pessoas na segunda metade do século xx.

tijolo, era a palavra que paulo freire, no brasil, propunha para iniciar o processo de alfabetização de adultos.

não pela forma como as sílabas estavam distribuídas, mas porque com tijolos se constroem as casas – e as casas significavam (e significam ainda) dignidade; e construção significava caminho desbravado no percurso para a cidadania plena.

sara trabalhou sempre na coisa pública e nunca teve um lugar de quadro. teve sempre trabalho e nunca emprego.

tudo parecia coerente. parecia.

um dia, por motivos profissionais, foi obrigada a mergulhar num charco de lacraus anfíbios, tão resistentes como as iguanas e tão mortíferos como os lacraus vulgares.

não estava sozinha no charco, mas as águas eram tão turvas que algumas vezes os elementos da brigada anti-lacraus não se identificavam uns aos outros. ou não se reconheciam.

foi na solidão desses tempos que sara viveu uma experiência marcante, que lhe roubou a serenidade que tinha para encarar a morte.

começou a ter um sonho recorrente: uma figura sem rosto abusava de uma criança. na sua casa.

ela ia à cozinha, procurava na terceira gaveta do armário do lado direito um rolo de fio de pesca, do tempo em que o filho brincava com canas. dobrava-o em dois – e a seguir, serena e determinadamente, passava-o pelo pescoço da figura sem rosto e apertava, até que esta sufocasse e libertasse a presa.

acordava sempre nesta fase do sonho. em paz.

o mundo de sara virou um caos. os seus valores não lhe permitiam, nem em sonhos, fazer justiça pelas próprias mãos.

procurou ajuda. o seu interlocutor era velho, santo e sábio.

depois de um silêncio significativo, disse com a sua voz já rouca: «não vejo motivo para tanta angústia. quer perante a lei de deus, quer perante a justiça dos homens, é um acto praticado em legítima defesa… em defesa de alguém mais fraco. tenha paz sara, tenha paz!».

sara não se lembra de ter voltado ao tal sonho.

neste tempo quaresmal, vivido por muitos cristãos com uma grande sensação de vazio, de falta de liderança espiritual, de formalismos rituais e de escândalos vaticanais, abri o livro de um jovem poeta e padre que, como o velho amigo de sara, quer percorrer o caminho da sabedoria e talvez da santidade: «é verdade que esta ofensa foi uma agressão, lesou abusivamente o meu ser, é uma coisa que não consigo perdoar… que provavelmente não vou esquecer tão cedo, ou nunca… mas não quero desistir de amar o amor e afastar-me da lógica da violência. o perdão desenha, pelo contrário, a figura relacional de um triângulo, introduzindo o factor deus, a possibilidade de vivermos o amor que contemplamos em deus. o perdão não é um assunto de dois, é coisa de três».*

talvez sara leia esta crónica – e isso a ajude a gerir o seu conflito latente. é que a ofensa que não consegue perdoar não foi feita a ela – é feita todos os dias a outros, mais fracos.

* tolentino de mendonça, josé – pai-nosso que estais na terra; ed. paulinas, 2011.

catalinapestana@gmail.com