‘Rezar’ sobre o leite derramado – Catalina Pestana

O s primeiros jornais online daquela segunda-feira noticiavam, em última hora, o tiroteio que teve lugar perto de uma escola judaica em Toulouse.

foram abatidas três
crianças e um adulto, por alguém que fugiu numa
scooter
.

na frança da
liberdade, igualdade e fraternidade, na páscoa de 2012.

as autoridades
interromperam a campanha eleitoral, e o presidente sarkozy declarou o
acontecimento como ‘tragédia nacional’.

nas semanas
anteriores, a candidata de extrema-direita, mlle. le pen, e o próprio
presidente-candidato, tinham respondido à insegurança dos franceses perante a
crise com a promessa de redução do número de imigrantes.

conseguiram.

o assassino de três
crianças judias e de um rabi, professor e pai de duas delas, parece ter sido o
mesmo que, na semana anterior, matou três soldados franceses, todos negros.

anteontem em frança
rezou-se na notre-dame e na sinagoga de paris, para além de qualquer diferença
religiosa.

chamo a isto ’rezar’
sobre o leite derramado.

 

a prostituição foi
legalizada na alemanha em 2002.

clare chapman, de 25
anos, perdeu o direito ao subsídio de desemprego por recusar o trabalho como
prostituta num bordel de berlim.

o pagamento de
impostos pelos proprietários do prostíbulo lava o conteúdo aviltante dessa
coisa a que se atrevem a chamar ‘trabalho’. e isto acontece no país mais rico
da europa, que se auto-atribuiu o papel de liderança da união europeia.

 

na síria, mata-se e
morre-se em tal número que os militantes da paz já não conseguem contar as
histórias de horror a que assistem ou que protagonizam.

o ditador sírio
impediu durante muitos dias a entrada da ajuda humanitária do crescente
vermelho e da cruz vermelha, perante a incapacidade (real ou simulada) da
comunidade internacional para fazer parar a barbárie.

mesmo a guerra, por
mais absurda que seja, tem regras: chamam-se ‘tratados’ e ‘convenções’. o que
não existe é nenhuma força internacional com poder simbólico para as fazer
cumprir.

 

entretanto, é tempo de
páscoa entre judeus e cristãos.

páscoa em que ambos
celebram passagens diferentes, mas passagens.

o vaticano acaba de
criar uma das raras comissões de inquérito criminal às fugas de informação
sobre as denúncias feitas ao papa e ao seu secretário de estado, tarcisio
bertone, pelo então arcebispo carlo maria vigano, ex-vice governador da cidade
do vaticano, e actual núncio apostólico em washington.

numa das cartas
tornadas públicas, vigano dizia-se vítima de difamações por parte de outros
altos dignitários da cúria a que recuso chamar igreja,  descontentes com a sua actuação moralizadora
levada a cabo entre 2009 e 2011. pedia para continuar o trabalho iniciado.
bertone reagiu, enviando-o para bem longe, com bilhete de avião só de ida.

sua santidade, sozinho
ou sob a influência dos que o rodeiam, não manda investigar as denúncias mas a
forma como chegaram ao conhecimento público.

 

entretanto, israel, a
acompanhar a manifestação de condolências enviadas à frança pelo massacre de
toulouse, oferece o apoio da mossad para ajudar a encontrar o assassino.

não me admiraria que,
daqui a dias, se constatasse que foi um palestiniano…

o presidente obama
garantiu, numa conversa telefónica com o líder palestiniano mamoud abbas, que o
processo de paz entre israelitas e palestinianos continua a ser a sua
prioridade em termos de política internacional.

os senhores do tempo e
os senhores do templo, na linguagem de frei fernando ventura, continuam, mais
de dois mil anos depois, a entregar ao martírio de várias cruzes milhões de
inocentes. muitas vezes em nome de um qualquer deus único.

este é o tempo de
recusarmos em conjunto lavar as mãos como pilatos.

este é o tempo de
refazermos as histórias dos nossos caminhos, tão pouco sagrados, percorridos
tantas vezes a coberto de roupagens religiosas.

catalinapestana@gmail.com_