Lenine agasalhado de palavras

Há pessoas que cativam logo pelo seu talento imensurável. Há outras que, mesmo não sendo demasiado afortunadas na aptidão artística, emanam um charme qualquer que nos leva até elas. O músico brasileiro Lenine tem isso tudo e muito mais. E até numa chamada transatlântica, com alguns problemas técnicos a prejudicarem a comunicação, é impossível ficar-se…

Assim que a agente lhe passa o telefone, é Lenine que começa a fazer as perguntas. Quer saber se já está frio em Lisboa, se deve dar mais espessura à bagagem. Tendo em conta que vem de um país tropical, dizemos-lhe que talvez seja melhor reforçar o guarda-roupa. O comentário que se segue respeita a forma tão natural como os brasileiros brincam com as palavras, mas também desvenda um homem ávido por elas: «Gosto mais do frio. Com o frio é possível agasalhar, com o calor você não se pode despelar».

Ouvir Lenine falar é tão cativante como ouvi-lo cantar, talvez porque, na sua obra, palavra e som estejam tão intimamente ligados. «Metade do que faço é a parte vernacular», não esconde, acrescentando: «Sou um apaixonado pelo relevo sonoro que a língua proporciona. É o idioma que me dá esta malha de sons, a diversidade rítmica das coisas que faço», comenta.

As canções nascem, então, sempre pelas palavras? «Não tem regra, até porque sempre que sinto que estou numa zona de conforto isso me incomoda. Tento não forçar nada e, às vezes, poso fazer um trabalho exaustivo de meses em torno do som de uma palavra, noutras aparece logo um riff de guitarra, uma linha de baixo», diz. Ainda assim, concorda, como coleciona «palavras há muitos anos» – tantas que já percebeu que não terá «vida suficiente para as estudar a todas» – é normal sentir que todo o vocabulário que já interiorizou revela-se através dos instrumentos.

Com o mais recente disco, "Carbono", editado em abril, ouve-se «uma sujeira» que já tinha explorado noutros registos, mas Lenine não dá grande importância aos rótulos que atribuem à sua música. «Fazer um disco é sempre um trabalho profundo de criação e sei que a minha música é repleta de informações. Mas cada um ouve o que consegue, o que quer, o que percebe… Depende das informações que cada um tem na cabeça», defende, comentando que é muito engraçado ver que, no Brasil, a sua música é descrita como «muito nordestina» e, no estrangeiro, o que reconhecem no seu trabalho é «justamente o que ele não tem de brasileiro: o rock, o funk…».

Nos concertos que traz ao Misty Fest – sábado, no Centro Cultural de Belém e, no dia 10, na Casa da Música – vamos poder ouvir um pouco disto tudo. Em vez de preparar um concerto de apresentação de Carbono (o seu oitavo disco de estúdio), Lenine resolveu presentear Lisboa e Porto com um espetáculo único, de voz e violão, celebratório dos seus 30 anos de carreira (completados em 2013). Até porque Lenine gosta imenso da palavra ‘carreira’: «No Nordeste significa ‘uma corrida muito intensa num curto espaço’. Não fiquei parado a contar, mas já que aqui cheguei, porquê não celebrar?».

Além de Lenine, o Misty Fest apresenta ainda concertos da cabo-verdiana Mayra Andrade (hoje, no Coliseu do Porto; amanhã no CCB, em Lisboa; e sábado na Figueira da Foz), a brasileira Dom La Nena (hoje, no CCB), e os portugueses Dead Combo (sexta, no CCB), Rui Massena (sexta em Vila do Conde; dia 14 em Aveiro), Maria Mendes (sexta no CCB; domingo na Casa da Música, no Porto), e Mísia (sexta em Aveiro; dia 14 no Cinema São Jorge). A par destes, os britânicos Cinematic Orchestra regressam a Portugal para três datas: sábado, no Theatro Circo de Braga; no domingo no CCB; e no dia 9, na Casa da Música. 

alexandra.ho@sol.pt