Igualdade parental no século XXI

No ano passado, Novembro brindou-nos com uma fecunda carga de água logo nos primeiros dias. Como eu já tenho saudades de ver cair tanta água em tão pouco tempo!

vestidinhos a rigor, lá fomos para uma conferência no auditório do montepio, ali mesmo na rua do ouro. a água foi tanta que, no conforto do ar condicionado, alguns tiraram os casacos encharcados e ficaram mais desprotegidos e mais frágeis.

parecia que se avizinhavam dois dias de um verdadeiro debate de ideias. havia-as para vários gostos. o ‘superior interesse da criança e o mito da síndrome de alienação parental’ – era o tema. foi a primeira vez que participei, em directo, numa discussão séria sobre o assunto.

para os menos avisados nesta linguagem, chamam os especialistas (e os autoproclamados especialistas) ‘síndrome de alienação parental’ a «uma campanha sistemática e intencional, levada a cabo por um dos pais, para denegrir o outro progenitor, acompanhada de uma lavagem de cérebro à criança, com o objectivo de destruir o vínculo afectivo ao outro progenitor»* .

pareceu-me que, ao tempo, sabíamos todos muito pouco, mas alguns estavam muito zangados e outros muito magoados.

parecia que os homens eram todos vítimas e as mulheres todas alienadoras.

detentora de um desejo quase inexplicável de perceber o que me rodeava, no intervalo fui falar com os homens. grandes, cultos, alguns bonitos, mas muito magoados.

magoados com a vida, com as ex-esposas, com a justiça, com a dor da ausência forçada do contacto com filhos em idades muito precoces.

dentro da sala grande, a conferência continuou o percurso programado. fui ficando pelos corredores, o melhor de todos os congressos, e ouvindo estórias doridas de quem mas queria contar.

e fui respondendo o que podia. que sim, que a grande maioria das crianças sexualmente abusadas o eram em contexto familiar, muitas vezes pelos próprios pais.

que sim, que homens e mulheres doentes ou perversos usavam a realidade, de si trágica, para destruir o outro cônjuge junto de filhos muito pequenos e muito confusos.

ao tempo, tinha dois casos nas minhas mãos (inábeis) para ajudar a resolver. não consegui.

nunca mais vi a maioria dos presentes, que se digladiaram naquele novembro chuvoso.

no princípio deste mês, fui convidada para participar numa conferência, em évora, subordinada ao tema ‘igualdade parental no século xxi’.

reconheci alguns homens que vira muito zangados e magoados no ano passado. alguns estavam acompanhados por novas parceiras. muitos já tinham o seu problema pessoal resolvido, mas usavam a sua experiência para ajudar outros.

algumas mulheres vítimas de alienação parental estavam lá. havia técnicos de saúde, de justiça, de educação, entre as cerca de duzentas pessoas presentes.

havia, entre os oradores, portugueses, espanhóis, brasileiros e irlandeses.

disseram coisas muito significativas, mas na atitude humilde de quem procura caminhos para evitar às crianças que ama feridas muitas vezes irrecuperáveis.

o que este grupo caminhou!

conseguiu-se mesmo fazer humor durante os jantares:

«vou propor a criação da associação das madrastas progressistas» – dizia uma jovem risonha e saudável que, com o companheiro, herdou dois filhos a meio tempo. «sabem, o miguel é um pai negligente, porque levou os filhos de férias ao dubai e o dubai é uma zona de risco: tem tigres».

debicando a sericaia do vizinho do lado, perante a falta de coragem de comer uma inteira, lembrei-me do zé mário branco a cantar pela primeira vez na voz do operário: «eu vim de longe, de muito longe, o que eu andei para aqui chegar».

* richard gardner, 1985, citado por clara sottomayor, 2011.

catalinapestana@gmail.com